sábado, 9 de agosto de 2014

Roseanas Poéticas 6-10


Seis

"Todo caminho da gente é resvaloso. Mas também, cair não prejudica demais – a gente levanta, a gente sobe, a gente volta!...”        João Guimarães Rosa



Não tá morto quem peleja?
Fundo de poço tem mola.
E vamos nos recriando
Com os açoites da sorte
E tudo que a vida tira
E dá.

Sim! Sacode-se a poeira
E a volta se dá por cima.
Sim. Sei. A vida é gangorra,
Ou, quiçá, montanha-russa.
Não. Não há que rir demais
Quando se está bem lá em cima:
Logo vem a bruta queda...
E bem lá embaixo, no fundo,
Se refugia a ascensão.
Fundo de poço tem mola?

Dá-me forças p’ra ser forte,
Ó Deus, meu Deus, meu Pai!
Ai! A luta é pertinaz
E o inimigo é cruel.
Já vejo o meu fim... Ai. Ai!
Deus! Faz Teu milagre, faz!
E traz à terra o Teu céu!

Mais tem Deus para te dar,
Do que o diabo p’ra tirar.
O demo, que tudo vence,
Não vence a fé. Não a fé?
Dá-me, Deus, o entendimento
Da montanha-russa, só.

Ai! A vida é um convescote
Que levamos muito a sério.
Demais, demais, tão demais!
Pois, assim, sempre, sempre
Há um coelho na cartola.
Fundo de poço? Tem mola.


São Paulo. HP. 10/4/2014



























Sete


“Sei e não sei.”        Grande Sertão: Veredas, p. 53.


Juventude. Ela, ela,
Eu a não aproveitei.
Medo, receio, paúra,
Desconfiança da vida
Assim: enfezadamente?
Muito consciente demais:
A juventude não deve
Cometer adultísses.
Sei e não sei. Tenho dúvidas.
Ai! A vida é duvidosa...
Ai! A vida é sorrateira?

Arrependimento? Não...
Sobre leite derramado
Todo choro é vão. Inútil.
Mas houve dias radiosos
E noites de pirilampos.
Ah! Luscaluscafuscando!
Tão tão acertadamente.
O cheiro – noite de mata
Alí: estrelizoando,
Vagalumiando. Oh!

Pirilampos reunidos
Sob os copos de cristal:
Sala verdealumiada,
Corações pirilimpando,
Ai, ai... os encantamentos!

Na noite não tinha medo,
Não tinha receio, não.
Eram jogos de baralho,
Pife, buraco, canastra,
Mico-preto, rouba-monte
E uma rolha queimada
Para pintar o nariz!
Lá, em volta de Gramado,
O mundo não existia.
Foi assim. Foi bem assim...


São Paulo. HP. 14/5/2014





 






















 Oito


“foi juvenescendo em mim uma inclinação de abelhudice”
                                                Grande Sertão Veredas: p.53.


De repente, assim do nada,
Foi juvenescendo em mim
Grande vontade de Deus.
Mas de um Deus não bem o Deus
Das pinturas mentirosas
De dois mil anos de fé.
O que o pintor pinta: Deus?
Não é Deus, é fantasia
À imagem e semelhança
Do mesmo homem. Só dele.
Eu queria um Deus grande,
Infinitonitonito
De tão sobreimenso grande.

Coceira de abelhudice,
Inclinação de pergunta,
Vontade de como-é?
Coração insofismado
No engasgo de por quê?
Como conhecer o Todo,
Eu que sou pequenininho?
Aquele que é mais do que é,
Que é sobreeternamente.

Como conhecer a Deus?
O Deus sem presença e face
Só puro espírito só?
Não o Deus de Miguelângelo,
Ai! Tão belo! Tão belíssimo!
Mas metáfora. Só. Só.


Eu quero o Deus indizível
Destes imensos silêncios
Impostos pelo infinito.
O Deus indizível, sim!
Deus da Via Negativa,
Que está ali... e já não?
Que não-está-mas-está,
Que é o contrário do oposto
Do que não sei, mas que sei...
Assim, assim: disfarçado;
Impossível. Necessário.
Não. Deus não cabe no mundo,
Mas cabe no coração.

E então ouço a voz que diz:
“Eu sou Deus, Senhor de tudo;
“Quem viu a Mim viu ao Pai...”
E já tudo se esclarece:
Eu queria o Sol, o Sol,
Mas – ai! o Sol não se pode!
Sobreinatingivelível.
É o Raio do Sol quem cria,
É o Raio do Sol quem vem?
Disfarce de Deus. Vigário.
Ele é o que não é?

Já tenho o Deus infinito
Numa chávena de chá.
E já tenho o que não tenho.
Já amo o que não é. É?


São Paulo. HP. 15/5/2014




 






















Nove


“Se todo animal inspira ternura, o que houve, então, com os homens?”
                                                                            João Guimarães Rosa


Saí, saíste, saímos.
E lá fora era o frio tanto
De fazer tremer o corpo
E fazer tremer a alma.
Não era o frio do frio tempo:
Era o frio dos corações.
Onde uma ternura solta
Como borboleta solta
Em seu voo de soluços
Amarelejando o ar?
Arre! Corações de pedra
Lá. Definindo destinos,
Acumulando pecados;
Pecados de ai, ai, ai...

Lá fora era o inconsequente.
O estúrdio. O sem-cabeça.
Mundo de rolo, só rolo.
Desvairado. Abismal.
Um mundo de Deus-nos-livre,
Com corações soluçantes
E almas acachapadas.
De doidivanas vontades
E de bem fracos rezares.
Já esquecido de Deus?

E a bondade curadora
Virasse história de antanho,
Mitológico relato
Quase esquecido de velho.
A ternura. Que ternura?
Sumida dos corações,
Fantasmagórica só.
Olhos empedrados frios
Sem nem traços de eu-amo?


O bem de muitos se rouba
Com cara bem deslavada.
Os mais líderes mais roubam
Deslavadaduplamente.
Os homens guerreiam, matam:
Ao assassinato chamam
Coragem honra valor.
Causas vãs: desconsoláveis,
De inimizade imposta,
De orgulhos tuberosos,
De vanglórias tão inglórias...

E lá fora estava o mundo,
O reverso do arreverso,
De cabeça-para-baixo,
Distante de seu Senhor.
Uma friagem maleita
Dominava o sem-sentido
Do grãorufar dos tambores,
Da vermelhidão dos tiros,
Do branquejar das hã-faces.

Saí. Saíste. Saímos.
E o mundo era triste, triste.


São Paulo. HP. 11/6/2014




 






















Dez


“moradores das grandes distâncias” Grande Sertão Veredas, p. 122


A Copa: ô, ô-ô-ô!
A Copa. O Brasil cheio
De ais e uis e ohs! Vixe!
Brasil cheio de alarido:
Vuvuzelas, pins e puns;
Latidos, ruídos. Idos.
Brasil cheio de puns-buns,
De moradores de longe,
De lá, das grandes distâncias.
O mundo é um. Será? É.

O Brasil cheio de roubos,
De muita mentira. Ira.
Brasil: mulato inzoneiro,
Que não sabe o que é inzoneiro.
É! Brasil do futebol,
Do sol, da serra, do mar.
Ai! Da terrível pobreza,
Dos políticos canhestros,
Menos no locupletar.
Parasitas do Brasil,
Monstros desconformes, vis,
Bem de matar muita gente
Lá, nos hospitais letais
Com médicos estrangeiros.
Brasil cheio de dor.
Dor.

O arzulejo de junho
Mostra uma nuvem rosada
E a lua que já desponta.
A vida é a mesma e outra
Ao embalo da torcida
De mentes inebriadas?
Pão e circo e circo e circo
E gentalha analfabeta
Só fantoche de corruptos.
O Brasil cheio de si
Na miséria e na burrice.


O Brasil cheio. A Copa.
O, ô-ô-ô, ô-ô-ô!
Cheio de cachaça e funk,
De cerveja e sertanejo,
De vãs fantasias – tanto.
Motos barulhentas passam:
O barulho é oração;
Impõe-se música ao bairro.
Entorpecidos sentidos,
Fanfarronice pagã.
E o Brasil cheio de vida,
De morte e ressurreição?
Sempre país do futuro:
A Copa veio, mas não
As obras da Copa, não.
Ai! A Copa é uma besteira...

Mas eu vibro, vibro, vibro.
Também quero circo e pão?
Não sou um? será? sou dois?
A Copa. Eu cheio. Eu.


Campinas, abertura da Copa, 12/6/2014

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