domingo, 26 de outubro de 2014

Roseanas Poéticas 41-45


Quarenta e um


Quem sabe direito o que uma pessoa é? Antes sendo: julgamento é sempre defeituoso, porque o que a gente julga é o passado.”


Se sei o melhor p’ra mim?
Ai, ai! Duvido que o saiba.
Soubesse, não cometia
Os imensos disparates.
Tanto eu quis só por querer,
Sem ver o certo e o bem,
E o resumo da querência
Era dor por demais grande.
São os outros que nos sabem.
Sim, pois nós não nos sabemos.
O meu olho não se vê...
Eu não enxergo meu rosto...
E quando tento me ver,
Lá no reflexo do espelho,
Então me enxergo ao contrário,
Pelos meus opostamentes.

Eu me olho e me desconheço:
Certo – não sei quem eu fosse.
Quem sou, jamais eu percebo.
De verdade, eu não me sei,
São os outros que me sabem:
Espelhos veros de mim...
É por isso que pergunto:
      Ó tu que passas! Quem sou?
      Tu que me enxergas! Quem sou?
      Tu que me amas... Quem sou?
Por favor, digam à claras
Quem eu sou, quem sou, quem sou?
Não deixem nada escondido,
Pois o segredo escondido
Já vira mil conjecturas,
Bem piores que o segredo.

Deslembrei de tanta coisa
E me esqueci de outras mais.
O sol é uma bola laranja
Quase impossível no céu.
Despede-se mais um dia
Dos que me foram entregues
Para por aqui viver.
Cada vez mais eu sei menos
Quem é que, em verdade, eu sou.
Na verdade, não me vejo.
Certo que não me conheço.

Na verdade sou feliz
Por haver o tanto tanto
Que eu todo desconheço.
A vida nos interlúdios...

Grande parte do futuro
Se acomodou no passado.
E se eu não sei quem eu sou,
Acho que eu sei quem eu era.
E sei que eu não quero ser
O que eu parecia ser
Quando eu era o que eu era.
A cada dia ser outro,
Mais vazio do que eu sou.
Pois é só quando eu não sou
Que passo a ser de verdade.
E deixo que os meus eus mortos
Enterrem seus tantos mortos.

O que é a vida, senão
Uma trama de ilusões?
O mundo ficou mais raso
Que chuva em capô de carro.
A mediocridade ativa
Que destrói toda nobreza.
As caixas de som, nos carros,
São arrasa-quarteirão.
Então escuta-se Bach
Ao tambor de leco-leco.
O asco. A sordidez...
Nobreza da alma humana
Violentada pela música.
O que se ouve é barulho
Com letras impronunciáveis:
Deveriam ser multadas
Por atentado ao pudor:
Violência sexual
A ouvidos desprotegidos.
Eu passei a noite em claro.
Percebi os mil ruídos
Da noite tão silenciosa.

Nós somos o que pensamos,
Ou somos o que sentimos?
Ou não somos nada disso,
Muito antes ao contrário...
Depende qual o sentir.
Se for aquele do corpo,
Eu sinto sem pensamento;
Mas pensando o sentimento,
Sinto em mim o pensamento.
Mas o sentimento d’alma,
Este exige raciocínio:
O que eu penso negocia
Como é que me vou sentir:
Ou é ruim da cabeça,
Ou é doente do pé.

Mas, no fundo, a alma é nobre,
Nasce plenamente pura.
A alma é um sinal de Deus
Na sagrada identidade
Do imo de cada homem.
Mas... se é nobre a alma humana,
Por que compõe porcarias?
Por que planeja vilezas?
Por que faz barbaridades?
O bem não é obrigatório,
Mas escolha facultada.
A nobreza é um continuum
Do menos cem ao mais cem;
Nela se evolui e cresce,
Ou se afunda mais e mais.
Como, senão, sermos livres?
Como o livre livre-arbítrio?
Foi-se o senso de pureza.
Quem comeu, arregalou-se.

Bem igual de diferente
São os pobres animais,
Que não podem ser distintos
Daquilo que sempre são.
Os animais não se sabem,
Mas são. Irremediáveis.
Já os homens, sim, se sabem,
Na pluralidade do ser:
O eu em si, do pecado,
E o eu em Deus, todo santo.
Que rumo dou ao meu barco
Que os ventos da vida empurram?
Para o mar aberto e a pesca,
Ou às pedras e ao naufrágio?
O vento sopra constante,
Mas o leme: em minhas mãos.
Ai, ai! Vós que me vedes!
Dizei-me agora: quem sou?
Somos tão cegos às faltas
Quando estão dentro de nós.
Escolheremos mais certo
Onde escolhemos errado?
Para tudo há um sentido?
O sol mergulha no mar?

Se sei o melhor p’ra mim?
Nada daquilo que eu quero!
E tudo o que Deus deseja.


São Paulo/Campinas, 23/8/2014
Para Sabrina e Mirella Granucci





Quarenta e dois


“Todo caminho da gente é resvaloso. Mas também, cair não prejudica demais – a gente levanta, a gente sobe, a gente volta!...”


Deixei a janela aberta
Só para escutar a chuva.
Longe, os trovões me alegravam;
Perto, as calhas gotejavam
Num crepitar bem molhado,
Como estranho fogo líquido.
Confesso que estou cansado
Das mesquinhezes da vida.
Cansado do dia a dia
Que a vida nossa demanda:
As senhas que não funcionam,
As senhas onipresentes;
Burocracia estatal,
O trânsito alucinado,
Impostos acachapantes,
Tão certeiros quanto a morte.
Preciso de vida mais simples.
Teje dó! Fico piongo...

A vantagem do passado
É que nós já o sabemos.
O futuro é todo incógnita:
Agonizadoramente.
E fico parado, quieto...
Ôxi! Engoli um morto?
Não quero bulir c’o tempo.
Não quero bulir co’a vida.
No meio da tempestade
O juízo baixa as velas,
Acolhe o sabor das ondas
E só se deixa levar.
Navegar contra o tufão
É certeza de tragédia:
Há que saber se curvar.
Sou miúdo na tormenta.
Pode me matar a vida,
Pode me matar a morte,
Mas eu sei que ressuscito.
Fico num siri com Toddy...

Posso confiar, será?
No meu pobre coração?
Os bons vão para o céu,
Os bonzões vão para o inferno.
Teje dó? Seguramente!
A vida nos quer matar,
Mas a noite traz o sono,
Ele, que é um sussurro
Da infinita eternidade.
Tudo o que a vida me cansa
O sono me desoprime:
Lá vivo a vida que quero
Em Lauterbrunnen, em Praga,
Em Londres, Paris, Carmel...
Em Dresden, Salzburg, Munique;
Inerlaken, Ulm, Grasmere;
Veneza, Florença, Roma;
Nas memórias de Gramado.

Fico quieto, carrancudo...
Sem pensamento ou palavra.
Engoli eu um mudinho?
Vix! O sono me dá sonhos,
Lampejos de eternidade.
Tudo isso me cai bem
Como chuva em roça seca.
O mundo do sono é bom
Qual namoro no começo.
E me despeço do dia
Com uma alegria imensa
Sem nem saudade do sol.
Você? Teja um bom dia!

Como posso ser feliz?
Não... Não me conheço, não.
Por isso pergunto a ti.
Cada qual com seus trabalhos,
Com seus sonhos, cada qual,
Girando na roda-viva
Do que é bom e que não é,
Se ocupando de tolices
P’ra não ficar enfadado
Até a hora final,
A tal hora derradeira
Em que viraremos sonho
E lembranças generosas
Se tivermos sido bons.

Só os santos são translúcidos
E só Deus é transparente.
A vida é do pó às cinzas,
Com entremeio de risos
E lágrimas de roldão.
Na vida morremos muito,
Mas a gente ressuscita,
Mas a gente se levanta...
Olhos poéticos. Longe...
E uma esperança de vida
Mais além da própria vida,
Na eternidade eterna,
No âmago luminoso
Do amor infinito de Deus.


São Paulo, 22/10/2014





Quarenta e três


“Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.”


Tudo parece sem Deus:
Um mundo desencantado.
O acaso domina tudo
E toda coisa que é
Bem poderia não ser.
E a causa final de tudo?
Uma não-causa, afinal?
Escolhi acreditar
Para dar maior sentido
Aos mil absurdos da vida.
E a vida assim: bem comprida,
Mais comprida que xingada
De homem bem gagagago.

Eu preciso tanto tempo
Quanto o tempo que eu preciso...
Tanto a dizer. Ou tão pouco.
As palavras vão ao fundo
Como pedrinhas no poço;
Mas se elevam, sobranceiras,
Como água que evapora.
Elas dizem e não dizem;
Tanto mostram, tanto escondem;
E, nos silêncios da fala,
Há mais dito que não dito.
Há inclusive o bendito
Daquilo que foi desdito.

Fui apreciando o segredo,
À espera de um de repente.
Não tenho medo de cobra?
Não me arrepio co’ aranha?
Talvez uma lua cheia
Me tirasse toda dor?
Sempre lidei com o mal
De uma maneira distante,
Mas ele está sempre perto,
Sussurrante. Ardiloso.
E. Onde está o meu espírito?
O meu eu veraz: cadê?

Ai! O que não sei é tanto!
O que era o meu destino
Quando mudei meu destino?
O que ia ser... já foi?
O verde-azul das montanhas,
O azul-verde do mar...
O inesperadamente...

Um olhar sem endereço
Me aprisionou a consciência.
Por trás daqueles carvalhos
Uma sombra se esquivou,
Afundou-se nos ciprestes
E aumentou o grão mistério.
Por trás de todas as coisas
Há algo vital e lúcido,
Há infinitos sussurros,
Há certezas invisíveis...
O grande mundo visível
É a persona de Deus,
É só o disfarce inquieto
De Quem é o Sereníssimo.
E ficamos por aqui,
Com o entendimento curto
Como pelo de cavalo,
Sem nem perceber o óbvio,
Sem nem alcançar o aqui,
Sem nem alcançar o agora.
Os mistérios são tamanhos!
As interrogações: mis...

Onde fui buscar sentido
Se o universo não o tem?
Onde li os muitos versos
Das poesias não escritas?
As tristezas coetâneas,
As alegrias coevas,
Todo dia. Sempre assim...
Ao longe rangiam bondes,
Os trilhos eram molhados,
Com o orvalho da manhã.
Também havia o padeiro,
E o afiador de facas,
De tesouras e alicates
(De cutícula, é claro!)
Que melancolicamente
Tocava de boca a gaita.
Fizesse a tarde gemer?
As simpáticas garrafas
De vidro, de leite – ali –
Bem na soleira da porta?
Como a vida rouba a vida!
Na voragem de uma fuga
Da Paixão de São João...

Maiormente eu bem queria
Enxergar os entretantos
E partir de vez. De vez.


São Paulo, HP, 22/10/2014

 


 
Quarenta e quatro


“Ser capaz de ficar alegre e mais alegre no meio da alegria. E ainda mais alegre no meio da tristeza.”


As desilusões da vida...
As desilusões da vida
Deixam a alma marcada
Com cicatrizes de dor.
O que foi que eu quis. Não quis?
Manacás e quaresmeiras;
Ardência de flamboiants.
Quando deixei de te amar?
Do mesmo jeito que o ontem
Talvez não seja o amanhã.
E talvez os mil suspiros
Me ensinem a ser feliz?
Melhor ser rico e saudável
Do que ser pobre e doente.
Porém, não ficam os ricos
Fora do Reino dos Céu?
Indeciso ponto e vírgula
Questiona a teologia.
Tropeço numa lembrança?
De algo que pensei eu ser
Longinquamente, no antanho.
Mitologicamente, eu?
O oposto do oposto. Ôsto?
Falando ao meu eu mais íntimo,
Sugeri sossego e calma.
Eu – impreterivelmente.

Não há bem que sempre dure,
Nem um mal que não se acabe.
E quem ama de verdade,
Anseia, sim, pelos dardos!
Sem isso, de que maneira,
Comprovar o seu amor?
É masoquismo ou sapiência
Sorrir ante os sofrimentos?
A árvore implora a poda.
A terra beija o arado.
Com fé, não há dor na dor
E sem dor não há sentido.
Por isso tomo mi’a cruz
E O sigo no Calvário.
Simples assim. Simples. Simples.
Como franzir o nariz.

O mistério da tristeza
É que, no fundo, não há.
As consequências de tudo...

Os segredos têm segredos.
Nada é o que parece.
A tão loucura de Hamlet
É só teatro, só cena.
O mundo é uma ilusão;
Uma peça teatral
Com ares de realidade.
Fosse o mundo de verdade,
Estaria em outras mãos.

O relógio está maluco:
Deu uma hora três vezes.
Mas tudo é incauto e pseudo,
Tudo é tantas lembranças...
O gato tem sete vidas,
Mas não tem ressurreição.
Se eu rio na minha morte
É que estou ressuscitado.
Ninguém é na falescência.

Quem tem boca sai de Roma.
Só somos o que levamos,
O vero amor que sentimos,
A fé que elaboramos,
A caridade sincera,
A humildade condigna,
A boa sabedoria,
A confiança em Deus.
O que deixo para trás?
Corpo, bens e honraria...
Não ressurreição não sou
Mais filho de pai e mãe,
Senão que de minhas obras.
Há tanto bem a ser feito.
Tanto amor a se entregar....

Sei que há coisas que não cabem
Em versos de sete sílabas...
Levei minh’alma a passear:
Estive dormindo onde?
A infinitude do sonho...

Devagar se vai não longe.
Quem disse que quero ir
Essa distância tão grande?
Tal qual um diamante bruto
Mi’alma se quer lapidada:
Cada corte um novo brilho;
Menos de mim, mais de luz.
Perfumo o machado agudo
Que me corta. E viro lenha
Para aquecer tuas tardes,
Queimando em tua lareira.
Porém, acima de tudo,
Tenho andado distraído.


São Paulo, HP, 22/10/2014.

 


 
Quarenta e cinco


“Deus come escondido, e o Diabo sai por toda parte lambendo o prato.”


Terei eu apego autóctone?
Ou pecados importados;
Altos, belos, estrangeiros,
Qual cheirosos eucaliptos?
Sou pessoa coitadinha?
Eu me apresso para a morte
Pois os mortos andam rápido;
Sempre estão antes de mim...
Para a eternidade eu vou,
É nela que me comprazo,
Nela está o meu repouso;
Sempre foi o meu destino.
A eternidade é de Deus,
O mundo mortal, do Diabo.
Ele é leseiro e vezeiro,
Senhor do mundo de pó.
Porém, se meu corpo morre,
Minha alma se eterniza,
E regressa, quieta, a Deus,
Que quietamente a recebe,
Mais enfeitada que burro
De cigano numa festa.

Sei que Deus é sutilíssimo,
Que Se oculta, que sussurra.
Nas belezas deste mundo
Ele é a matemática;
Ele é a geometria
Incansável do universo
Disfarçada de beleza.
Sonoro em música muda.

O Demo escuta as palavras;
Deus escuta o coração.
Mais tem Deus para me dar
Do que o Demo p’ra tirar.
Por que temo a vida, as horas?
Sabe Deus tudo de todos?
Se sabe, já dará jeito;
Se não sabe, não é Deus.
Confio em Sua mão forte
E em Seu juízo bondoso.
Pecados arrependidos
Diante d’Ele são virtudes.
E Deus não responde às preces?
Não! Deus não está aqui,
Ou no oceano profundo,
Ou no cimo das montanhas,
Entre as estrelas do céus.
Um deus que está não é Deus:
Deus é o Deus que nunca está.
Deus é aquilo que é.
E nada do que dizemos
E nada do que pensamos
Pode alcançar Seu mistério.
Deus é tudo e é nada.
É o que eu não posso expressar.
Um malentendidoeterno.

William Blake conheceu Deus?
Sei que, ao menos, O pintou...
Como pintou o Demônio
E os fogos infernais.
Nas mãos hábeis dos artistas
Ah! Deus fica menos Deus
E o Demônio mais Demônio.
A pintura é uma mentira
Que nos revela a verdade?
“Sabei que Deus é espírito!”
E se pinta o que é espírito?
Na tentativa de ver
Os artistas nos cegaram;
Ao manifestarem Deus,
Certamente O ocultaram
Atrás de mil véus tão belos
Que ficamos adorando
O Deus criado na arte
À imagem e semelhança
Do homem, a criatura.

Onde encontro Deus, então?
Ou na fala, ou no silêncio;
Na quietude, ou movimento;
Ao redor, ou no meu íntimo;
No que vive, ou no que morre;
No que é doce, ou no amargo;
No que é, no que não é...
Em tudo e em nada: Deus.
Além de tudo que eu possa
Imaginar, pensar, crer.
Uma abstração completa;
Uma meta inacessível;
Um mistério. Um mistério.
Absolutaeternamente.

O beijo da escuridão
Me retirou a consciência.
Episódios de tristeza
Com o gosto do pecado...
Como o mal sempre se esconde
No desatino e tolice?
Se eu tivesse um coração
O que ele saberia?
E nas feridas da vida,
É só passar merthiolate?
O que eu sei e o que não sei
É tudo e nada que eu disse.
A fumaça do cigarro.
O espirro da borboleta.
A vingança do repolho.
A água-benta evapora?
Se sim,
Se sim,
Se sim,
Não.


São Paulo, HP, 23/10/2014

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Roseanas Poéticas 36-40


Tinte e seis


Hem? Hem? Ah. Figuração minha, de pior pra trás, as certas lembranças. Mal haja-me. Sofro pena de contar não...” GSV, p. 11


Pois: o universo se estica
A cada roupa passada?
Se eu não tivesse lembranças
Não haveria passado?
Mal haja-me! Já não sofro?
Lá – bem pouco tempo atrás
Todos os artistas fumavam
E tinham os dentes tortos.
Certas lembranças agudas
Me dizem que envelheci.
Don McLean cantando era
Algo tão solene. Era?
Naquele dia em que a música
Morreu e ele fez canção?
Joan Baez, pluricantante,
Denunciava as injustiças
E suplicava o amor.
Eram tempos inocentes?
Nunca houve tempos puros
Pois o mal sempre existiu.
A pureza está por vir...
Mas era um mal bem mais simples,
De se explicar numa frase.
E se podia cantar.
Mal antigo era sinfônico?

Andei por muito lugar
Assombrado, espavorida,
Mas nunca vi um fantasma.
Os abantesmas se ocultam
De quem neles não dá fé?
O demo somente existe
Para quem nele acredita?
Talvez eu isso soubesse...
Talvez tivesse resposta.
O impossível nos cerca?
O improvável se avoluma?
Antes tudo agora fosse
Com o mesmo bem que era...
Eu não sabia de nada,
Mas era bem mais feliz...
Passado, é bonitamente?
E qual é a diferença
Entre um grande diplomata
E uma também grande dama?
Vejamos: o diplomata,
Quando diz sim, quer dizer
Talvez. Quando diz talvez,
Quer dizer não. Se diz não,
Não é um bom diplomata.
Já em relação à dama:
Quando diz não, quer dizer
Talvez. Quando diz talvez,
Quer dizer sim. Se diz sim,
Pois... não é uma grande dama...

Como o sabão lava o sujo,
O perdão lava o pecado.
E as milongas de justiça
Apaziguam as almas.
A nobre Mercedes Sosa
Quando cantava. Era o céu?
Era como se a Justiça
Abrisse alas entre os séculos.
E se se cala o cantor
Certo: cala toda a vida!
Mas por que eu digo isso?
É porque o mundo está triste
Por lembrar de tantos males,
Nas as vertigens das eras,
No rebuliço dos tempos.
Lembranças más se distendem?

O três de maio de Goya
É genial, mas é arcaico.
As cenas contemporâneas
São bem mais fulgurejantes.
O terror expandeceu-se
E o medo se dissemina.
Não dá um frio na barriga
O aquecimento global?
É possível ser feliz?
Só sem a consciência plena
Do mal tamanho que encobre
O que há de bom nas consciências,
De puro nos corações.


Retro sei: o mal que é feito
É menor que o mal que é.
Pois o mal que o demo gosta
Não é o ele da ação má,
Mas o do homem que é mau.
Não o mal simples, do ato,
Mas o complexo, da essência.
Esta a sua trajetória:
Cada vez mais para o fundo.

Hem? Hem? Ah. Lembrança torta
Que grande pena que dá...


Campinas. 24/7/2014









Trinta e sete


“A gente cresce sem saber para onde.”


Eu queria, belamente,
A poesia pura e boa,
Desfocada: qual lembrança
De infantis felicidades.
A minhas, ou de meus filhos,
Tanto faz e tanto fez;
Mais para cá. Para lá?
Toda infância é uma só!
Toda infância é perfumosa...
Ou a não ser que não seja,
Por má violência ou crime,
Por barbaridades outras
As cujas o demo aplaude.
Mas a infância bem feliz
A gente vê desfocada,
Qual paisagem na neblina,
Ou vista de olhos chorosos.
Exatidão entristece.
Tudo alegre é fugidio
Como o pio fugaz do cuco.
E também do bem-te-vi?

Lugavozônios do André:
Altos ou baixos estavam,
Indicando a energia
Do salto, corrida e pulo.
Regulamento da alma,
O forte-fraco notáveis.
Eles: os percebimentos.
O mundo uma arena: circo.
De cores rodopiantes,
Surpresas e sustos. Risos.
Circo: todo faz de conta.
Menos os malabaristas,
Os trapezistas e o resto.

 Alexandre, com doze anos,
Carregando o Dom Quixote
Para os recreios da escola.
Volumosa narrativa:
As hilariedades mis.
Findou as muitas leituras?
Livro nunca se termina,
Por mais que ao ele se finde.

Fio de linha amarradinho
Na cintura da cigarra.
E lá vai ela, empinada,
Tão qual como uma pandorga,
Voejando a liberdade
Nos mesmos tempos bem curta
E também bem divertida.
Ideação de criança.
Bole e rebole. Tem fim?

Toda infância é esperançosa?
Os dedos dos pés no barro,
Olhos e ouvidos na chuva,
Os cabelos em vertente.
Tudo numa baita chuva.
Na grama se escorregava,
Mãos e joelhos tingidos:
A verdura do brinquedo.
Pelada no chuvaréu:
Não era não de jogar,
Era chafurdar molhado
Caindo sempre que quando
Para mais se remolhar.

Os risos desnuviosos
De uma alegria simplíssima.
Toda dor era somenos,
Coisa de adulto-velhices.
Tinha joelho ralado,
Picada de marimbondo,
Grudices de carrapatos,
Insolação, pesadelos.
Os sonhos repetitivos
De gritar por pai e mãe,
De ficar mudo p’ro grito,
De suar bem frio. Terrores?

 Relance do corredor,
Laz amarelada acesa,
Um novelo de lã vem
Desenroloso, malvado.
O rastro de fio p’ra tás.
Então se punha a crescer,
Enormemente! Estufoso!
O pavor sem voz me alçava,
Chorava sentado. Hirto.
Surreabilidade toda,
Repetitiva, capeta.
Tem sentido este terror?
O surreal pavoroso?

Sofrer de infância é esquecido,
Se não for em demasiado.
Se corre, brinca e se ri
E as dores já são antanho.
Beijo de vó cura tudo,
E os anjos cantam novenas.

Tinha as bolhas de sabão
Em canudos de mamona.
Balouçantes, tremulosas,
Feitas só de quase nada.
Revestidas de arco-íris,
Avoejantes. Tão mágicas!
E bolha dentro de bolha:
Surpresamente lá presa.
Travessuras. Os enfins...

Lavar o carro do vô
De água com querosene,
E ganhar o trocadinho
Para comprar figurinhas.
As elas! Surpresas muitas,
Das que tinha e que não tinha.
Abrir o envelope: festa.
O bolo de figurinhas,
Tidas dupla ou triplamente,
Carregado para a escola,
Para as calçadas, as praças:
Trocar pelas das lacunas,
No negócio negociado,
Ou lá batendo os montinhos
Para ver o que virava.
P’rá quem torce Deus, na sorte?

 Esquiávamos no rio.
O Guaíba. Esparramoso.
Navegava-se sem vento,
Num prumo plano e lisinho,
Uma planície ribeira,
Se se ia pelo Conga,
E pelo Furado Grande,
Também pelo Furadinho.
No Saco da Alemoa,
Entre a dita Ilha das Flores
E a Ilha dos Marinheiros,
Também era esconderijo
Dos ventos tumultuosos
Que, subindo alvoroçados,
Do sul da grande Lagoa,
Quase nos roubavam grandes
E memoráveis passeios.
Ventos soprosos-soprosos.

E não havia os carrinhos?
Fabuloso trem elétrico?
Bolinhas de gude. Elas!
Mas tudo isso é muito longo,
Pertence a outra poesia...
Não é a infância infinita?
Para a frente e para trás?
Ela é, ela é, é!
Tão desmesuradamente.


Campinas. 29/7/2014
Para André Danesh e Alexandre Nabil Beust

























Trinta e oito


“Felicidade se acha é em horinhas de descuido.”


Carrinhos eram Matchbox,
De rodinhas bem ligeiras
E mil cores e formatos.
O brincar podia ser:
Devagar, estacionado,
Pelas ruas dos tapetes;
Garagens sob as poltronas.
Os cinzeiros eram praças,
Ou balsas, cruzando rios.
Igual ao mundo real.
Igual menos a maldade.
Mas eram também velozes,
Nas grãs pistas amarelas,
Com direito a saltos, loopings,
E disparadas certeiras.
O domínio da alegria.
Possuimento do riso.
Aquilo: lá e acolá.

Os carrinhos. Os Matchbox.
Por onde foram sumindo?
Ai! Onde vai parar tudo
Que perdemos lá na infância?
O medo de lobisomem,
O medo de assombração?
Num certo colo: a cabeça;
Na cabeça: os cafunés.
Infância: é lá só doçuras?
Queria dizer que sim,
Mas, triste, bem sei que não.
Há muita infância pranteada.
Há muita infância atroz.
De chorar eternamente?

 Mas eu tinha um trem elétrico
Que o vô trouxe da Alemanha.
Märklin. Perfeito! Tão eito!
Circulava entre estações,
Carregava seis vagões,
Para trás e frente ia.
De Porto Alegre a Gramado,
De Gramado a Nova Iorque,
De Nova Iorque a Paris.
A Tóquio, Praga, Munique,
Bariloche, Buenos Aires,
À Lua, Saturno, Vênus,
Mercúrio, Júpiter, Marte.
E infinitas dimensões.
Ainda não existia
O trem que levava a Hogwarts...

Draco dormiens nunquam
Titillandus. É. Pois é.
O trem passava sob livros,
Abertos em cabaninhas.
Outro trem mais erudito
Não houve e não haverá.
Cruzava os mundos de Mann,
De Schiller, Goethe, quem mais?
Todos sempre em alemão.
Meu trenzinho poliglota...

Se cruzava com carrinhos?
Pois que sim! Os carregava!
E areia, feijão, arroz.
Os grãos das romãs: rubis.
Cacos de vidro: diamantes!
O mundo não acabava
E eu era rico, bem rico:
Um castelo não sei onde...

Tive sarampo com febre,
E catapora com febre
E febre de sol demais.
Não tive a febre do ouro
Porque eu já tinha um trem
E um castelo... Onde será?

 Moldava bolas de barro
E enfiava nelas folhas:
Iam todas para o fundo.
Quando o barro dissolvia,
As folhas, tantas, voltavam:
Eram submarinos, todas,
A mergulhar e a voltar,
Em viagens misteriosas.
A piscina se manchava,
Algum adulto ralhava,
Mas eu fazia de novo.
Teimosia de criança
É, lá, certeza de vida?

Tio Érni nos ensinava
A fazer veleiros ágeis:
Uma lasca de madeira
Aplainada e bem bicuda;
Um talho no meio, embaixo,
Fixava a quilha. Outro mais,
Na popa, fazia o leme.
Palito fixado em cima,
Papel de pão recortado:
Lá estava a vela: funável.
Dez centímetros de largo,
E as náuticas surpresas:
Zigue-zagues inclináveis,
Velas na água, molhadas,
E o resgate com vassoura.
Mas porém não naufragavam.
O trenzinho também não.
Trem e barcos: semelháveis.

Tia Marga era o carinho,
Tia Binha a elegância.
E tio Ico me impedia
Ai! De ser filho do avô.
Mas neto tem mais vantagens;
Neto é filho duplamente
De pai que já foi treinado
E passou pelas paixões.
Fazer geleias com a vó,
Lavar o carro c’o vô,
Tudo nas luminescências
De dias bem infindáveis
Das altitudes da Serra.

 Passeávamos nos trilhos,
Da via férrea esquecida;
Recolhíamos os cravos,
Grandes – de crucificar.
Passos largos nos dormentes,
Passos curtos sobre os trilhos.
Caídas folhas de plátanos,
Redentas. Pentapontais.
Os plátanos me emocionam:
Respeitam quatro estações.

É: a infância tem seus cheiros,
Tem seus gostos e seus sons.
Leite condensado, sempre,
Com sagu, morangos. Puro.
Cozido: de comer quente
Só com creme de baunilha.
Tinha o chá de erva cidreira
Perpétuo na geladeira.
As folhas sendo queimadas
Em chamas recrepitantes
E fumaças vaporosas:
Cheiro de melancolia.
E o dos lençóis e cobertas,
O dos armários fechados,
O das roupas dos avós...
Universo de emoções
Com só medo de fantasmas,
De tudo que não existe,
De tudo que não faz mal.

No mais: eram os deleites!
Gostoso: tirar espinho
Que encravou no rodapé.
Agulha, meticulosa,
Escarafunchando, ela,
Na tridimensional pele.
Doía e não doía.
Era o carinho espetado,
O amor escarafunchante,
O cuidado liberal.

Sim. Pois. Era tudo isso.
E muito mais. Que eu não disse.


São Paulo. HP. 30/7/2014






















Trinta e nove


“Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum!” GSV, p. 11


Ai! O homem dos avessos!
Ai, ai! Os crespos do homem!
O anticristo pessoal,
Privado de cada um:
Personalíssimo monstro...
Todo mundo é Dr. Jekyll?
Todos têm seu Mr. Hyde.
A maldades bem malvadas
Nascem da transformação?
O homem vira ao reverso,
Se manda destrambelhado,
Virando o mundo ao avesso,
Jogando sal pela terra,
Pisoteando todo bem.
Monstro mor, alucinado,
Despossuído de siso,
Alucinado de demo,
Embriagado de fúria.
De onde vem o mal que é nosso?
Por que brota em mim o ódio,
A indiferença, o rancor?
Sou eu mesmo que me salvo?
Sou eu mesmo que me dano?
Eu mesmo, nos meus avessos?

Não, o mal não entra em mim;
O mal já está cá dentro,
Embutido em meus pensares:
Ei! Sorrateiro tinhoso.
Bifurcação de minh’alma
Que leva ao céu e ao inferno,
Tão atropeladamente;
Embaralhamento meu.
Subo ou desço desconforme,
Arrebatado por mim,
Nos escolhidos caminhos.
É Deus em mim. Ou o diabo?

 Não houvesse escolha, livre,
Haveria o nosso arbítrio?
Diante de Deus me coloco.
Escolho o bem ou o não-bem?
Não existe o puro mal
Bem lá: nas infinitudes.
O mal é, do bem, ausência;
Vero, mesmo, só o bem:
Todo o mal são as antípodas,
Todos os tantos reversos,
Contraluminosidades.

Toda luz e toda sombra
Existem dentro de mim.
Sou sempre eu que me escolho
Para subir ou descer.
O demônio é o egoísmo
Que está sempre a latejar:
A dor de dente da alma.
Certamente, para baixo,
Todo bom santo me ajuda.
Não preciso do demônio:
Eu sei me danar sozinho...

E é por eu poder fazê-lo
Que sou julgado nos céus,
Que minha alma é pesada
No julgamento de Deus.
O mal é falta do bem,
Como a escuridão é falta
Da luz – pois esta é que existe.
Como um buraco é a falta
Da terra, vera, existente.
Sei: o mal é só desbem...

Sim! Eu me unjo ou me enforco!
Capiroto em meus sapatos,
Satanás a me encarar
Quando me olho no espelho.
Isso eu não adivinhava
Já nas fábulas de Esopo?
Não, não há o mal que existe,
Só há o mal que eu decido.
Tudo o que é bom vem de Deus.
O que é mau vem de nós mesmos.
Contranegativamente.
Aos pulos, sustos e gritos.

 O homem que escolhe o bem
É só lisuras, assopros;
É um quindim no paraíso,
Braço direito de Deus.
O homem que faz o bem
Endireita um pouco o mundo,
Remenda as dores da vida,
Dá sobreexistência às almas.
Todo benfeitor é filho
Dileto de nosso Deus.
Sim: ele escolheu certo,
Se afastou de todo mal.
Sim: sabe que o mal existe,
Mas o conselho do mal
Não é o que ele segue.
Não. Ele escolheu a luz.
Vive nas luminescências
Das auroras boreais
Tremuloresplandecentes
Sobre as colinas da alma.
Tão bem assim. Tão bem. Tão.


São Paulo. HP. 07/8/2014
Para Paulo Roberto de Araripe Sucupira
























Quarenta


“É briga enorme... É um homem... Vou indo pra longe, para a casa de meu pai...” GSV, p. [116]

As casas tantas, as muitas!
Embelezando terrenos,
Alindando tudo em volta
Em belas jurisprudências
De extremo supra-gosto.
Tudo na lindura alegre
Do que é velho e muito novo,
De mãos dadas, assertivos.
Sempre a madeira nos móveis,
De ancestrais demolições,
E os belos quadros! Sorrisos
Espalhados pelas salas.
Várias, tantas, muitas casas:
Cada outra bem mais bela
Que a uma que já havia.
A sofreguidão de lares.
Busca do lar verdadeiro?

As casas muitas, as tantas...
Ubá e Mogi Mirim,
São Francisco e Florianópolis,
E Santiago e Açores...
E, no futuro, onde mais?
Certo que a Morada Eterna
Já a têm em construção.
Aquela. Na eternidade.
Não requer manutenção?
Morada que, de tijolos,
Tem o amor e a compaixão,
E cuja argamassa eterna
É a fé e a humildade.
A casa de encantamentos,
Iridescente de luz.
Não. Não uma casa a mais,
Mas A casa. Tão só. Ela.
A casa de bem e amor
Que espera todos no céu,
P’ra morar na eternidade.
Casa que não é bem nossa,
Mas que é mais de nosso Pai.
Nela nos deu de morar
Na eterna eternidade.
Bem como nos deu o corpo
P’ra morar aqui na terra:
Casa pequena e mortal
De dores, doenças, fístulas
E um dia derradeiro.
As epopeias constantes...

As diversas tantas casas
Alindando tudo em volta.
Jóias de telhado e telhas,
Belezuras de morar.
Cada uma tem um nome?
Se não, deveriam ter:
Casas grandiosas têm nome.

Saint-Exupéry na Ilha!
Quem diria, em Floripa!
Qual a praia em que ficou
O pequeno grande Príncipe?
Foi no Saco dos Limões,
Onde o mal se combatia:
Famigerado escorbuto?
Em qual das mais de cem, certas?
Zé Perri ia ao Campeche.
Lá. Na praia o mar respira.
Grandemente impassível.
Seus grãos olhos transparentes
A contemplar, lá nas praias,
Gerações que se sucedem,
Ocupadas em morrer.
Mar se esparrama na areia
Como língua de mariscos.
As gaivotas na gangorra
Das ondas que sobe-descem.
A infinitude das causas.
Na frente, o mar. Cheio d’água.

Elas. Casas. Muitas, tantas.
Ah! A gente sofre, sofre,
Muito sem querer querer.
Vivendo sempre epopeias...
Sei: entre o tudo e o nada
Há uma muita infinitude.
As ondas se assomam,
Se esticam, arrependidas.
No mar, as ilhas flutuam.
O mar é plano. Lisinho.
Lisurinha bem bonita
De acalmar o coração.
Eu estou bebendo o mar
Com os olhos sedentos
De alguma eternidade?
A incompletude humana...

Essa angústia que nos move...
(Não conheço nenhum médico
Que somente desopere!)
Ai! O horror! O horror! O horror!
O pobre homem, acamado,
Tem que morrer da doença,
Não da tentativa de cura.
E as casas que teve, ou não,
São trocadas habilmente
Pelo asséptico hospital.
Ai! Deus dê-me a morte boa
Na minha cama gostosa,
Com livros na cabeceira.
Não querendo nem a vida...
(Lá fora, um dia crocante.)

As casas. As casas. Tantas.
E lá, dentro das paredes,
Amor, limites e guia.
O acolhimento amoroso...
Há quantos séculos nós,
De verdade, nos amamos?
Aturdimento de mundo...
As cujas algumas coisas...
Mar encrespado de frio,
Mar em síncopes sinfônicas,
E se recolhe em suspiros?
Mar respirando em gorgulhos.
Maré sobre, sorrateira,
E um solitário a correr...

Mal não é quando pecamos,
Mas quando achamos que não.
O barulho do mar. Mar?
Lava a cabeça da gente.
Em Itaquaquecetuba
Eu perdi meu coração.
E minha pronunciação.
Luzes mortiças lá fora,
No meio da madrugada.
E o pensamento fininho,
A paciência bem pacienciosa
De pasto virando leite.
A areia bebe o mar,
Pescadores puxam rede,
Chuvinha de molhar bobo.

As muitas casas variadas,
Mas c’o mesmo coração.
E os tantos olhos, palavras,
São só de amor e carinho:
Não é aqui o Paraíso?
Bendito é o lugar, a casa,
Onde a menção do bom Deus
Foi elevada aos bons céus.
Mas minha toada é triste:
Estou cansado do mundo...
Se não for para ser bom,
Do que vale minha vida?
E lá posso acrescentar
Um côvado à minha altura?
E o mundo então se parece
Bem mais chato que chinelo
De gordo bem gordo. Gordo.
Cachorro corre na praia?
O céu se emenda no mar.
A polimultifonia
Dos grãos silêncios da praia.

Casas. Tantas, muitas casas.
Não de morar. De viver.
Como um túnel vai se abrindo,
Nós deslumbramos mistérios
Que insistem em não dizer
A razão por que vieram.
Beleza pentapontal
Das tão variadas orquídeas...
Reflexo torto das luzes
No mar que parece liso.
E esta poesia, bem ela,
Que é mosaico de palavras,
Pensamento heptassilábico
Do que acho que não sei.
Mas sei das casas. Das elas.
E sinto grandes saudades
Daquelas que não conheço.

Eu vejo o verde bem verde.
Eu verde o vejo bem vejo.
As casas. As casas.
Elas.


Campinas, 23/8/2014
Para Stélio e Tarcísia Granucci