sábado, 9 de agosto de 2014

Roseanas Poéticas 16-20


Dezesseis


“Viver... O Senhor já sabe: viver é etcétera.” 
                         Grande Sertão Veredas, p. 70


Nada importa, na verdade,
Porque tudo sempre passa.
A vida ficando curta:
Mais lembranças que esperanças.
Natais com luzes e brilhos.
Ela. A maria-fumaça
Soprando estrelinhas mil
Na noite fria, em Gramado.

Santa Terezinha – a praia!
De cômoros milenares,
Pescarias, sambaquis.
Estrelas cadentes – tantas!
Praia reta do Rio Grande
E a sapalhada a coachar.
E assim bem grande – grande!
O infinito no mar.

Em Berto Círio era o rio.
Sinos. Sinuoso Sinos,
A curvejar na planície,
Onde havia a olaria.
Centenária também. Bem.
Com os fornos misteriosos
E as correias de tijolos.
Prateleiras infinitas
Onde os tijolos dormiam?

E a transformação alquímica:
Tijolos e telhas cinzas
Amadurecem vermelhos,
Crestados no fogo a lenha.
A chaminé: alta e clara
Como uma ideia platônica,
Como um perdido farol.

Os mortos no Rio dos Sinos
Se procuravam com velas
Sobre os pires – flamboiantes.
A funéria procissão
Se ajuntava sobre o corpo.
Ali. O afogado morto
Era pescado sem isca,
Levado ao campo de paz.
Frente ao campo do Esperança,
De arquibancada de tábua
E torcida de vai! vai!
Será que aqueles finados
Torciam para o Esperança?

Seu Borges e Dona Nita
Fazendo o mundo bem certo.
Dores mudas. Sofrimento?
Eu não entendia nada.

Mas havia lobisomens
Que barulhavam de noite.
Acordar em grito! Grito!
Todo sonho é verdadeiro?
Seu Borges contava causos,
Cevando o mate, pitando.
Perfume doce de palha,
Palavras doces de amor.
Galinhas. Patos. Que mais?
Um cachorro, certamente?
Quatro jabuticabeiras
(Tudo aqui é centenário?)
Velhas de dar dó. Pois é?

E as certezas imprecisas
Ali faziam casulo.
Para onde eu ia. Sei?
Eu boiava como os pires
No leito escuro da vida.
Eu era como um assombro,
Quase como um desespero.

Mas meu pai contava histórias:
Fui assim ressuscitado.


São Paulo. HP. 25/6/2014
Para Ana Cristina Beust Silva, a Neca













Dezessete


“Foram infelizes e felizes, misturadamente.” 
                                      Terceiras Estórias, p. 23


O inferno é e se eu?
E se eu tivesse casado?
E se eu não tivesse casado?
E se eu morasse no exterior?
E se eu falasse japonês?
E se eu dormisse direito...
Para cada decisão,
Infinitas descartadas?
E a vida cheia de vidas
Que não chegaram a ser.
E se, agora, um beijo?

O torvelinho do outro,
Do que não foi nem será...
Deixei a felicidade
No caminho que não fui.
E o choro é sofrido, pálido:
Musgo em pedra de ribeiro.
A pessoa amada – ela!
Conheci? Não conheci?
Prisioneiro do será...

Se eu não tivesse pecado,
Não conhecia o perdão?
O meu eu alternativo
Já não seria o meu eu:
Meus caminhos não trilhados
Não eram os meus caminhos.
Determinismo? Tolice?
Gosto de dente escovado.

Frescura no paladar:
Verdade fresca na boca
E fresca no coração.
Podia ser. Que sim? Não?
O oposto do reverso,
O agora. O depois.
Toda serendipidade
Estava escrita p’ra ser?
Não ter decidido nada
Era melhor ou pior.

 
Fui infeliz e feliz.
Tudo misturadamente.
As lágrimas que eu sorri,
Os sorrisos que eu chorei...
Decidindo o meu destino
Com certeza acertadeira?
O que sobra do destinho
Lá, depois que Deus decide?

Quis ser grande e fui pequeno?
Ou fui grande e não pequeno?
Tenho certeza do oposto,
Desdigo o que afirmei:
Nem mais aqui quem falou!
Com coragem de dizer
Tudo aquilo que eu não penso.

Uma coisa só é certa:
O que fosse diferente
Não caberia na vida,
Na vida vivente minha.
Era coisa de alterego.
Era doideira demais?
É. Pois.


São Paulo. HP. 25/6/2014


 




Dezoito


“De repente, desriu.” Grande Sertão: Veredas, p. 66


Não. Não se pusera sério.
De repente, ele desriu.
A vadiagem dos risos,
Desassombrada, caolha,
Já não lhe cabia mais.
Era tempo de vetusto,
Pela morte acontecida.
Rir da morte? Caberia?
A morte é assunto sério,
Pois dela nada se sabe.
Nada não. Sabe-se: vem.
Vem, de vir mesmo, não vem.
Não. A morte não nos chega,
Somos nós que lhe chegamos.
A more espera. No sempre.
Eternizando pessoas,
Abrindo os portais de Deus.

De repente ele desriu.
E avançou pela floresta
Até escutar o cuco,
Até enxergar Grasmere
Do alto de um pico alto
Na vastidão do Lake District.
Repouse Wordsworth em paz.
(Com este nome nem era
Preciso ser um poeta.)

Caminhou. Recaminhou.
Descaminhou outra vez.
Por onde andasse: beleza.
Lá os homens não pesassem?
Não estorvavam o mundo?
O cemitério, mais cheio
De gente do que as cidades,
Cidadezinhas, pacatas.
Feitas de pedra e beleza.

De repente ele desriu.
Queria ficar aqui
Para sempre e mais sempre.
E o não poder era triste
Como todo não poder.
Escutou raios de luz
E dos sons sentiu o cheiro.
Tudo era – maravilha!
Então mil fotografias
E viver vicariamente
Por todo o sempre. O sempre.
Ambleside se desfazia
Numa bruma cor de rosa,
Flutuando sobre o lago
Maravilhaincrivelmente.

Mas. Ah! Havia a questão.
Da morte. Do mais além.
Questão do será? Será?
Nosso Senhor prometeu:
“Estarás ainda hoje
“Comigo no paraíso.”
Não houvesse, não falava.
Acaso era de lorota?
Há de haver o mais-além?
Lá onde nós consolamos
Cada nosso desconsolo.
Aonde levamos tudo
Que nesta vida nós demos.

A vida eterna e a mortal?
Entre lá e cá: abismo!
Aqui, dos pais somos filhos.
Lá: filhos de nossas obras...

Ele sentiu nas montanhas
Um traço de eternidade.

Ele, de repente. Riu.


Campinas. 26/6/2014







Dezenove


“demorou dentro de um momento” Grande Sertão: Veredas, p. 67


Foi. Sei. Dentro de um momento
Foi que eu me demorei. Ei.
E a eternidade se fez
No vislumbre da outra vida:
Aquela que não vivi,
Aquela que se promete
Apenas aos que enterramos.
Eles. Mortos para a vida
Mas vivos p’ra eternidade.
Singularmente bem vivos
Nos arrabaldes do além?
Vivos. Sim – definitivos.

Sei, sei; ou não sei, não sei?
Quem de lá que já voltou
Co’ explicação justa e certa
Do que não se vê? Se tem?
Desconfiança de tantos!
Mas é promessa de engano?
Quem promete é mentiroso?
Quem promete é Deus! Oh! Deus.
Pode desenganar? Ele?
O assim eterno e santo?
Pode mentir Sua boca
E enganar malandramente?
Sei não. Sei não. Sei não não.
Certo que é vero o Seu dito,
Um vero profundamente.
Ele diz. Ele rediz:
Fico certo por um triz.

Entre o que Deus quis que eu fosse
E aquilo que eu me quis ser
Iam longínquas distâncias,
Uma desfaçatez tola
De ânsias desrelatadas.
U’a meiga desilusão,
Arrependimento. Ô!

Ah! Sei que arrependimento
É mudar comportamento:
Ali – no solerte tudo,
No emboramente sofrido.
E tudo para quê? Quê?
Para encontrar Deus no céu!
Não foi o que me disseram?
“Santo anjo do Senhor,
“Meu zeloso guardador,
“Se a ti me confiou
“A piedade divina,
“Sempre me guarda e ilumina.”

O propósito da vida
É ser feliz. Ser feliz?
Não. O propósito é outro:
Ser bom. Acima de tudo:
É ser bom. Ser bom. Ser bom.
Ser bom pela eternidade.
“Ainda hoje estarás
“Comigo no Paraíso!”
Disse na cruz nosso Deus.
É firma reconhecida.
Um definitivo acerto,
Um definitivamente,
Certeza desmesurada:
É um vim, vi e venci.

Dentro de um momento eu vi
O meu infinito-eterno,
O meu durar para sempre.
O que os meus olhos não veem
O meu coração pressente.
Eu. Sem dó nem piedade.

Tardei dentro de um momento,
E já era a infinitude
Do que sei e não sei. Sei?


Campinas. 27/6/2014



 



 
Vinte


“Ao um modo, melhor que tudo é se cuidar miudamente trabalhos de paz em tempo de guerra.” Grande Sertão: Veredas, p. 69


A paz não é eloquente.
Murmura. Sussurra. Chia.
Miudamente é que cresce,
À sombra dos desatinos,
Da rebeldia dos homens.
Pode-se ajeitar o mundo?
Não sei... Quem do mundo é dono,
Nele pudesse mandar?
A vida segue. Mesmice.
Algo então se desenrola
E o destino logo é outro.
Logo a maré muda. Muda.
Ah! Como o mundo dá voltas?
E então a paz que não era
Bem bem em esgotamentos,
Já é. Soberanamente.
Impiedosamente está.

No dia em que a paz se faz
Quem da paz já tinha a lide
Já suspira de contente.
E os mil trabalhos de paz
Tomam o mundo qual hera
Curando as chagas da guerra.
Quem faz paz miudamente
Herdará o mundo sem guerra?

A Primeira Grande Guerra:
P’ra extinguir todas as guerras;
Mas foi a paz que fizeram
Que extinguiu todas as pazes.
A paz e a guerra dos tolos.
Os homens desacertados?
Faz cem anos já. Agora.


Sim. Há pazes e pazes:
Paz da astúcia – venenosa,
A irônica paz da morte,
Da destruição absoluta.
Há a paz do medo mútuo
E a paz do império – mortal.
Quem é que quer qualquer delas?
Paz com o gosto de opressão
Não é paz. É opressão.
Paz. Paz mesmo, quem concede?
Quem conquista? Quem? Quem? Quem?
É tudo um ah, pois! Ah, pois?

A paz de verdade é verde.
Se esparrama como a hera,
As sementes de carvalho,
Lá, no silêncio do mundo,
Quietude dos corações.
A paz de verdade é quieta:
Vem no sussurro da noite,
No suspiro da alvorada.
A paz de verdade é doce.
Um ai. Sorridentemente.

Nascerá a paz veraz
Porque Deus a quis – será.
Mas o como, o onde, o quando
Não são os homens que sabem,
Mas os anjos guardadores,
Os anjos da guarda. Eles?

Homens! A paz verdadeira!
A do amor no coração.
Chega da paz de mentira
Que é só semente de guerra?

A de mentira é do demo.
A de verdade é de Deus.


Campinas. 1/7/2014

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