sábado, 9 de agosto de 2014

Roseanas Poéticas 21-25


Vinte e um


“Lugar não onde” Grande Sertão: Veredas, p. 72


O passado é um lugar
Lugar distante: não onde?
Sim. O lugar do passado
É um sorriso maroto
E uma lágrima furtiva.
Lá. Onde tudo já foi.
Já foi? Mas em que sentido?
Brinco agora com meus baldes
Na praia das minhas férias.
Santa Terezinha. Lá.
Os cômoros tão gigantes
De descer de papelão.
Gôsto de alegria e areia.
Ela: crocante nos dentes,
Soprosa nos fortes ventos.
Já desço as encostas brancas
E já rolo pelo chão.
Já é ontem outra vez?

O passado é inescapável
E nos assombra p’ra sempre,
Ou nos enche de alegria.
Aniversários sem fim.
O Natal das mil magias,
O ho, ho, ho de Noel.
O passado. O passado?
Um lugar não onde. Onde?
Dentro do meu coração.
Lugar de tempo perpétuo
Que existe ao meu bem querer.
Um lugar não onde. Onde.

Passado. Lugar não quando,
Sempre presente. Vivíssimo.
Lugar onde sempre estou
A caminhar as veredas
Das lembranças alquebradas
De tudo o que eu fui. Que sou?
Minhas trilhas conhecidas
Onde sempre não andei.
Onde nunca não estive.
Quebra-cabeças de mim
De cores tão variegadas.
Encaixo alguns pedacinhos,
Mas há grandes vão sem nada
Que preencho com perguntas
E bocejos de tristeza.

No passado eu não sabia
Que tudo era já passado
No momento que que ocorria.
Viver no presente? Pode?
Tudo devir e porvir:
O presente não existe?
Ele vai vir... e passou.
É um não-lugar. Não-tempo.
O presente é sempre antigo.

E na fluidez do agora,
E que agora já é antes,
Eu percebo o inevitável:
Quando for a minha hora
Ela já terá passado.
Morrerei no antigamente.


São Paulo. 2/7/2014






Vinte e dois


“Ao doido, doideras digo.” 
Grande Sertão: Veredas, p. 74


Já fui à Lua? Três vezes!
Mas voltei uma das vezes.
A lua: tinha apagado
E me deixou sem luar.

Vi a Lua, pirracenta,
Cobrir o Sol num eclipse;
Ficou só um anel no céu,
Anel de fogo e poder:
A lua era minha noiva,
Pudica e arrebitada.
Sobremaneira tão casta?

Todo o dia o sol se banha
Lá nas águas do oceano.
Ele desvia das ilhas
Para não se machucar.
E quando ele sai do banho
É o oposto do contrário?
O que poderia ser.
E a gente vê a aurora,
Que é a toalha do Sol.

Quem disse que a vida é justa?
Américo Pisca-Pisca
Quis reformar tudo tudo.
Não se quer findar o mal?
Tudo só de bom não fosse?
Como a doce bergamota
Lança perfume no ar?
O vermelho de tomate
Do qual se veste o caqui?
Pois, então? Bambalalão.

Correu um boato amargo
De deixar a boca estreita.
Coloquei um grão de açúcar
E virou um elogio.

Na casa dos meus botões
Abriguei com compaixão
Desabrigados da enchente.
Foi o rio que transbordou.
Foi a chuva lenta e grossa.
Então o olho da agulha
Chorou. Hein? De ai, meu Deus!
A menina dos meus olhos
Brincava de esconde-esconde.
E lá vou eu, lá vou eu,
Pego quem não se escondeu!

Onde estava o Pererê,
Que não entrou na garrafa?
Por que o passado é passado?
Por que o futuro. É futuro?
Na rede dormi c’os peixes!
Descansei de tanto ser.

Inverti os meus problemas
E troquei os meus bocejos.
Tudo ficou bem mais fácil
Como o ovo que o sol pôs.
E não fosse esta canseira,
Eu trilhava o fim do mundo
Só p’ra ver a moça-prenda
Do rincão do mais-além.

Eu? Se eu acredito em Deus?
Sim. Eu acredito em tudo!
Em todas as coisas raras
Que Kafka quis esconder?
No princípio era a barata.
Não havia detefom.
Então. Gregor Samsa foi.


São Paulo. HP. 2/7/2014






Vinte e três


“Queria novidade quieta para meus olhos.” 
Grande Sertão: Veredas, p. 75


Quero novidade quieta
Para meus olhos cansados?
Sei que julgo o mundo todo
De acordo com o que vi
Ou conforme o que vivi.
Como crer no inusitado,
Como perceber o novo?
O futuro me cutuca
A onça com vara curta.
Coração dando recados...

Estudava a solidão;
Dela veio alguma coisa
Desigual do que eu sabia:
Não logrei ficar sozinho,
Só sem ninguém ao meu lado.
Dentro de mim: multidões?
Gente tanta de outros tempos
E de outros mil lugares.
Coração dando recados
E a alma em. Cogitações?

Venha o futuro enrolado.
Doce. Como rocambole.
Quero novidades quietas
No coração benfazejas.
Coisas novas que são beijos
Da vida no coração.
As novidades dos anjos,
As surpresas formosuras
De um futuro que ri.
Peito de vidro moído.
Suspiro de antagonismo.

Se eu queria a paz, adiante?
E quem não quis? Quem não quer?
Vida desiste do ui?
Rosa existe sem espinho?
Já logo tropeço em tudo
E os membros não me obedecem.
Vida feliz, cá na terra?
Como assim, que não há bruxas?
Minha novidade quieta
Vem cercada de tropeços,
Para susto e escândalo:
O frouxo desassossego.

Os importantes defeitos
Desta vida, eu não esqueço.
Deus não quis que boa fosse;
Se não que: espinhenta brava.
Viver não é sossegado.
Vida cada vez mais longa,
Mais cheia do que já foi,
De lembranças impregnada,
Cheia de era-uma-vez.
E o que vem: é sorrateiro?
É paga de dias idos,
Ou abono de indulgências?
Movendo no puro ar
Anseios de dias breves
E despedida cabal.
A hora certa: já fui.

E que a vida não separe
O que a morte reuniu.


São Paulo. HP. 2/7/2014






Vinte e quatro


“Tem horas antigas que ficam muito mais perto da gente do que outras, de recente data.” 
Grande Sertão: Veredas, p. 73


Nem não suspirei. Que nada.
O que se foi já deixou
De ser ardido ou doído.
Como o campo já ceifado
Eu já me encontro esgotado.
Em paz. Pois já sem desejos?
O que eu queria, já tive,
E o que quero a morte dá.
Sombras cada vez mais longas
De quem eu era. Quem sou?

Dias verdes em Gramado,
Colher framboesas no pé.
Junto ao riacho, os morangos.
Torta de nozes da vó.
As horas antigas minhas
Perfumadas de azaléas
E pinheiros balançantes.
Os miosótis floridos...
(Mas... o que são miosótis?)
Oniscientes paredes
Viram lágrimas e risos,
Nossas íntimas certezas,
Tênue sombra de esperança
Que nos leva sempre adiante.
Sou cada vez mais pretérito?

Lá. Na luz onde eu vivia,
Sem o breu do entendimento,
As coisas eram mais plenas,
Por imperfeitas e rotas:
A bênção do não saber.
Paraíso é esquecimento.
Sim? Há que cruzar o Letes...

Da vida os variados tristes
Emudeceram em mim.
A exatidão da tristeza
Se perdeu em desconsolos
Já tênues como a neblina.
Pirilampos me rodeiam
No negrume do passado.
Lembrança de meia-lua
E muitas demais estrelas.
Pedras de basalto: úmidas,
Pisadas por pés antigos.
Jogos de croquet na grama
E grandes sapos noturnos.
Tudo vibra aqui bem perto,
No longe que foi um dia.
O passado é um doce-amargo?
Pois sim. O passado é um.

A bênção de não saber
Gira o pião da alegria
De todas as juventudes.
Já a infância é o astrolábio
No mar ignoto da alma.
Sou aquilo que disseram
Que eu era desde a infância.
Eu sou uma narrativa?
Lá, enfim, nos claros nadas.


São Paulo. HP. 2/7/2014





 


 
Vinte e cinco


“eu não sentia nada. Só uma transformação, pesável. Muita coisa importante falta nome.” 
Grande Sertão: Veredas, p. 80


A dúvida da certeza.
Recolhido rebuliço,
De trás para frente, assim.
De outra feita, me aprumei
E pensei que tudo era.
Mas o que é? O que é?
A vida é jogo de sombras,
Esconde-esconde co’a morte.
É. Muita coisa importante
Falta o nome do que é.
Só transformação, pesável,
Nas vísceras do interior.
Poucos arrependimentos,
Lágrimas poucas. Sorrisos.
Tudo embaralhado atrás;
Conformidade que foi?

Da outra banda do rio
Se foi-se chegando a balsa,
Molhada como um suspiro,
Resvalosa. Obediente?
A balsa seguia o arame
Puxado com pleno esforço
Com manetes de madeira:
O progresso gotejante
Do cruzar o rio dos Sinos.
Sim. O coração goteja?
Ao cruzar o rio da vida?
Se há muito para trás,
Sei que há bem mais para a frente:
Lá, cá? Infinitos novos.

Eu. Eu? Padeci do quê?
Descontinuadas tristezas,
Tristes como o colorido
Das lápides tristes? Tristes.
Lápides azuis e rosas
Desconformes com a morte.
Revestidas de azulejos.
Ali. Com flores de plástico.
Tudo tão incongruente!
Como uma escola de samba
Em corredor de hospital,
Gravidez de doze meses,
Guaraná de Coca-Cola,
Ou espirro para dentro.
Diametralmente oposto.
O outro lado de cá?

Fiquei a ver lembranças
Como na lanterna mágica.
De tudo o que foi não foi
Tirei uma lição. Ão?
Despedi-me do passado
Eu? Como quem quer voltar:
Tanta coisa lá ficou?
E o futuro do pretérito,
De que tamanho será?
No futuro: que lembranças
Eu guardarei no passado?
Quanto de mim será eu?
E recordações vistosas
Embalarão o meu sono?

Quanto de mim viverá
Quando eu viver no  futuro?
E quanto é que já serei
Como um tomo terminado,
Eu: um redemoinho verde,
Aceno de despedida,
Perambular de ilusões.
Eu?


Campinas. 7/7/2014

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