sábado, 9 de agosto de 2014

Roseanas Poéticas 26-30


Vinte e seis


“Deus nos dá pessoas e coisas, para aprendermos a alegria. Depois retoma coisas e pessoas para ver se já somos capazes da alegria sozinhos... Essa... a alegria que ele quer.” João Guimarães Rosa


Meu rumo sozinho. Vou?
Quem entende a solitude
Na qual abraço o destino,
Tem medo da solidão?
E me vejo em ilha? Só...
Bicho raro. Com certeza?
Não gosto de companhia...
Muito menos se falada?
O silêncio me faz bem.
Quero estar nas quietudes?
A amizade é o azul
Onde se penduram as nuvens;
Vital como respirar:
Mas o ar que entra, logo sai.
Preciso de solidão,
De meus dias sem ninguém.
Não é que eu não ame o mundo;
É que eu o amo demais.
Amor de auto-suicídio,
Bem de fogos de artifício.
Cuido p'ra não explodir.

Há pessoas tão gregárias
Como um cardume de peixes,
Como um bando de andorinhas,
Como as espigas de milho.
Mas há outros qual baleias:
Só aparecem bem pouco,
Jorram alto jato d’água,
E submerge. Retirantes?
De cardumes, eu não sou.
Nem de par sou costumeiro:
Eremita. Monge. Só.
Deus me fez para farol?
Só. Bem lá longe fincado.

O único amor que tenho
É o amor por todo mundo.
Nunca terei uma eleita,
E não sei o que é romance...
Pelo amor e pelo ódio
Os homens muito se perdem.
Quando amo apenas um, eu?
Desamo os outros também;
E não quero desamar.
O amor que quer é prisão?
O amor que não quer, liberta.

Sim, eu crio os meus fantasmas
Como alguém cria um soneto:
Belos, mas indecifráveis.
E amo infinitamente,
Só que sem identidade,
Sem erregê, cepeéfe.
É amor ao portador:
Quem na minha frente, eu amo.
Amor como um cheque à vista?
Sem propriedade ou destino.

Vou te amar eternamente
Na distância do meu ser.
Sei que sou como o horizonte:
Eu me afasto sempre mais
Quanto mais tu te aproximas.
Mas quem mantém a distância
Pode ver os meus ocasos
De vermelhos e lilases,
E contemplar as manhãs
Que ofereço sorridente.
Tantas delas. As ignotas?

Aceita, pois, meu amor.
O meu amor? Qual amor.
O amor que é e não é.
Amor constante-distante,
Que é terno, gentil e abstrato.

E, de longe, tu perguntas:
– E por quem os sinos dobram? –
É: eles dobram por ti.


São Paulo. HP. 10/7/2014






Vinte e sete


“Eu tinha o medo imediato.” Grande Sertão: Veredas, p. 78


Não. Nenhum de nós é dono
Do seu inteiro destino.
Completo e reto. Direto?
Destino é um blusão de lã,
Os adornados com tranças,
Três agulhas tricotado,
Não duas apenas. Só.
Três agulhas tricotando
O que vai ser, que será:
Misteriosagulhamente,
Destino de tricotar?

A primeira das agulhas
É a Vontade de Deus:
O não mudável. O claro.
O inalterável, o perfeito.
O definitivo. É!
Quem pode escapar da morte?
Quem deixa de respirar?
Vontade de Deus é Lei
Sobre o destino de tudo.
Como circundam os mundos?
E funciona o tudo todo?
Vontade de Deus: só ela:
Criando o grande destino,
Inescapável. De tudo.
Deus é um definitivo?

E a outra agulha. Segunda?
– Eu sei bem, pois já testei –
É a vontade dos homens,
Vontade minha também.
Eu que tanto quero quero,
Me empanturro de querer.
Defino com nãos e sins
Os meus caminhos e atalhos;
Outros escrevem, também,
Tanto que será de mim
Como simples consequência?
Todos dependem de todos,
As vontades se entrecruzam,
O versa-vice de tudo?

A composição insólita
Da ilusória independência:
Nunca somos singulares.
Nós sempre somos plurais.
Somos nós. E mais o mundo?

Terceira agulha do fado
É a feita de acidentes:
A simples causa e efeito,
Da operação das leis. Eis!
Leis invisíveis. Os olhos
Inúteis desnecessários.
Leis inalteráveis. Eis?
Que a tudo submetem. Elas.
Todo-poderosas leis.
Leis inescapáveis. Leis!
Sobre tudo e todos regem:
Majestosamente leis.
E ao seu contra e a favor
Bate e rebate o destino
No desconforme e conforme
Do que foi. Podia ser?

Será o destino impiedoso?
Sofrerei fugindo – indo
Como tentou fugir Édipo?
Lá. Fugir para encontrar?
Três agulhas tricoteiras
O mistério tricotando?
Quem dirá o próximo lance?
Que surpresas vão guardadas
Nos fios que tecem as Parcas?
Eu tinha o medo imediato:
Tanto eu não controlo, tanto!
Os reveses se avolumam,
Eu não sei bem o que eu quero,
E o que há atrás do monte?
E o que há atrás do mar?

O destino. Eu entendia?
O que eu dizia que era?
Loisa e coisa bem confusa
De entender de trás p’ra frente,
No anverso do reverso
De tudo o que foi.
Será?

São Paulo. HP. 10/7/2014
Para Claudia Paixão





Vinte e oito


“quem muito se evita, se convive” Grande Sertão: Veredas, p. 9


Quis tanto evitar o demo
Que ele entrou dentro de mim.
Sim. Pois quem muito se evita,
É certo que se convive.
Vade retro. Satanás?
Ai da minh’alma esmoleira!
Centavos de salvação?
Acho. Em noites como estas
É preciso se esconder.
Os grandes todos negrumes...
O diabo só sai de noite?
Lá. Lá! O diabo na rua
No meio do redemunho...

Não! Mais tem Deus para dar
Do que o diabo p’ra tirar.
Fugir do demo é inútil,
Ele está em cada esquina,
Em cada piro e suspiro,
Em cada piscar de olhos.
Grandes engarrafamentos...

Não se apaga a escuridão;
Acendem-se luzes! Eis!
Quem me fez mal me fez bem.
Fogo e vingança exterior,
Dentro: luz. Misericórdia.
Se penso em quem me fez mal
Sou eu que me faço mal?
Pensamento de vingança
É porta aberta p’ro demo:
Então não sei, não sei. Sei?

Iniquidade fugida
É iniquidade sabida!
Pois do mal há que esquecer,
Não dele correr. Fugir?
Eu fujo do que eu enxergo,
Mas do que eu esqueço, estou livre.
Do mal? Há que desistir.
Uma leveza de alma
Que não aprendeu pecado.
 
E pecado é danação?
O vije-cruz dos infernos?
Pecado é perda de tempo,
Andança nas contra-mãos.
Ô! Pecado é só caroço!
Gôsto de fruta madura?

Deixei de achar que eu sabia
Com quantos paus – a canoa?
Sei que olhei miudamente
Na hora que o sol se punha.
O instante em que a borboleta
Junta as asas p’ra rezar.

Talvez o absurdo de tudo
É que tudo é inteligível:
Ou entendo co’a cabeça,
Ou é a barriga que entende?
Sei coisa – supremamente:
O céu é cheio de bem
E cheio de mal o inferno.
Se volto as costas p’ro demo,
Nos olhos luz luzidia
É o que brilha e o que rebrilha,
Sem treva, sombra ou escuro.
Da maldade! Deus me livre?

Quero o doce bom do bem,
Das escolhas acertadas:
Do florescente miúdo;
Não do grande condenável.
O amor lépido e fagueiro
Nas ações do dia a dia.
Serei assim? Ou assim?
Certamente serei. Sim?


São Paulo. HP. 10/7/2014




Vinte e nove


“Nonada.” Grande Sertão: Veredas, p. 9


E fui eu assoviar?
Chupando cana, teimoso.
Quem disse que não dá para?
O difícil é p’ra já,
O impossível leva um tempo.
Tudo o que é foi impossível?
A fé remove montanhas?
Acreditar, muda o fado?
Esperei pelo impossível
E ele me veio de chofre
Numa impossível manhã.
Lei antiga: olho por dente
Dente por olho, ao revés.
Deus não joga: fiscaliza?

Dentro de mim: um futuro.
Um latejamento certo,
Uma impossibilidade,
Uma vírgula? Nonada.
Sei não? O mundo é um hospício?
As folhas secas do outono
Queimadas em montes altos;
Incensando ruas, almas,
Num quase de antigamentes.
Com fumaça preguiçosa:
O perfume de não sei,
O cheiro de me esqueci.

Para usar taça de chá
É preciso o chá beber.
Pode-se depois por vinho.
Para pôr quatro girafas
Num fusca com elefantes,
É mister tirar os estes
Para que caibam aquelas.
Tudo é ou-ou? Não e-e?
A vida é uma escolha múltipla?
Quando os nove-fora: nada.
Inquietudes do universo:
De ser barrigudo aos trinta
E sem barriga aos sessenta.
E tantas vontades torpes,
Tão tristes quanto pés feios.
Sim, os homens muito altos
Têm a calça jeans na canela.
As vidas desconhecidas;
Sim. As elas outras tantas.
Variadas como vitrines?
Vida segue como segue,
Pois é uni duni tê,
E mais sala mê minguê.
Um sorvete colorete
Para mim e p’ra você?

Fui buscar o meu sentido
Nas rimas da minha infância.
Achei bela morena
Que no Tororó deixei.
Eu já esquecia quem era?
Aproveita, minha gente,
Que uma noite não é nada,
E quem não dormir agora
É porque sofre de insônia.

Queria saber de tudo
Para não errar em nada.
Então cessava o sofrer?
Porém? Eu sou o que eu sou,
Sem pôr nem tirar. Assim?
E onde vive minh’alma?
Estou para eternidades.

De onde vêm os meus suspiros?
Que fazer d’alma cansada?
Quem ficar cansado agora,
Dormirá de madrugada.


Campinas. 12/7/2014
Para Robert Miessler, in memoriam.








Trinta


“Do demo? Não gloso. Senhor pergunte aos moradores. Em falso receio, desfalam no nome dele – dizem só: o Que-Diga. Vote! não...”  
Grande Sertão: Veredas, p. 9


Eu me ralei e esfalfei?
Ai! In perditionis via.
Culpa do demo? Bem fosse...
O Tinhoso não alcança
Minhas profundas vontades.
Sou eu mesmo que me dano?
O que me afasta de Deus.
O que me afasta do bem?
Há o Ente mau que sussurra
Bem no coração dos homens?
Junto da veia vital.

Se o inimigo é externo
Faço guerra c’o de fora.
Mas se o inimigo está dentro,
Faço guerra com mim mesmo.
Eu. Será que sou o outro?
Um recheio do Quê-Diga
Num sanduíche de eu?
O eu único é dois.
Ou é vertente malvada
Que deságua no meu rio?
Pudesse eu ser só bom. Viva!
Alvísssaras esperanças?

Por que o Cão, Anhangá,
Operando sorrateiro?
O Demo é formiga preta,
Sobre uma pedra bem preta,
Numa noite muito escura.
Não se contempla a danada,
Mas ela opera. Sagaz?

O Canhoteiro, Canhoto,
É sombra minha? De mim.
O Danoso é conhecido:
Morasse ao mesmo endereço?
Se sim, se não, eu sei quê.
Porco de asfalto. Satã:
Guardião do livre-arbítrio,
Defensor das liberdades
Muito humanas de pecar.
O Pernicioso, Nocivo,
Faz cá de nós morais seres?
Se não, só bem nós fazíamos?
Marionetes do correto,
Sem sim, sem não, sem talvez?
O Canho, Mastim, Canalha
É bem menos tão terrível,
Ou é terrível demais?
Ele é eu mesmo eu. É?
Sei que é. Mas outrosado.
É o dessemelhante. Ele.
Dessemelhantemente.
Jurisprudência infinita?

Não há Capeta, lá fora,
Pior que o Demo de dentro.
Ninguém me mandou fazer
Qualquer dos males que eu faço.
Eu não sou um. Eu sou dois?
Um que constrói o inferno,
Outro que semeia a paz.?
O Tinhoso só existe
Para que eu possa escolher
Entre o de cima e o de baixo.
O Cachorro? O Mastim?

Na luta entre a luz e a treva
Eu ganho ou perco o meu prêmio.
O Ardiloso, o Biltre, o Perro:
Informes formas do mal.
Ai! Eu sou uma legião?
O Maldito não é ser,
Não, não é má existência:
A de existir de verdade
Com garantias de euzisse.
Dimensão de mim que é,
Faceta do meu eu ser.
O Perdido sou só eu.

O Überich me convoca
E o Es me sussurra n’alma.
Qual escuto? Qual atendo?
De minha escolha dependo:
Serei escravo ou liberto?
O Demônio, bem eu sei,
É o egoísmo insistente?


Campinas. 14/7/2014

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