terça-feira, 9 de setembro de 2014

Roseanas Poéticas 36-40


Tinte e seis


Hem? Hem? Ah. Figuração minha, de pior pra trás, as certas lembranças. Mal haja-me. Sofro pena de contar não...” GSV, p. 11


Pois: o universo se estica
A cada roupa passada?
Se eu não tivesse lembranças
Não haveria passado?
Mal haja-me! Já não sofro?
Lá – bem pouco tempo atrás
Todos os artistas fumavam
E tinham os dentes tortos.
Certas lembranças agudas
Me dizem que envelheci.
Don McLean cantando era
Algo tão solene. Era?
Naquele dia em que a música
Morreu e ele fez canção?
Joan Baez, pluricantante,
Denunciava as injustiças
E suplicava o amor.
Eram tempos inocentes?
Nunca houve tempos puros
Pois o mal sempre existiu.
A pureza está por vir...
Mas era um mal bem mais simples,
De se explicar numa frase.
E se podia cantar.
Mal antigo era sinfônico?

Andei por muito lugar
Assombrado, espavorida,
Mas nunca vi um fantasma.
Os abantesmas se ocultam
De quem neles não dá fé?
O demo somente existe
Para quem nele acredita?
Talvez eu isso soubesse...
Talvez tivesse resposta.
O impossível nos cerca?
O improvável se avoluma?
Antes tudo agora fosse
Com o mesmo bem que era...
Eu não sabia de nada,
Mas era bem mais feliz...
Passado, é bonitamente?
E qual é a diferença
Entre um grande diplomata
E uma também grande dama?
Vejamos: o diplomata,
Quando diz sim, quer dizer
Talvez. Quando diz talvez,
Quer dizer não. Se diz não,
Não é um bom diplomata.
Já em relação à dama:
Quando diz não, quer dizer
Talvez. Quando diz talvez,
Quer dizer sim. Se diz sim,
Pois... não é uma grande dama...

Como o sabão lava o sujo,
O perdão lava o pecado.
E as milongas de justiça
Apaziguam as almas.
A nobre Mercedes Sosa
Quando cantava. Era o céu?
Era como se a Justiça
Abrisse alas entre os séculos.
E se se cala o cantor
Certo: cala toda a vida!
Mas por que eu digo isso?
É porque o mundo está triste
Por lembrar de tantos males,
Nas as vertigens das eras,
No rebuliço dos tempos.
Lembranças más se distendem?

O três de maio de Goya
É genial, mas é arcaico.
As cenas contemporâneas
São bem mais fulgurejantes.
O terror expandeceu-se
E o medo se dissemina.
Não dá um frio na barriga
O aquecimento global?
É possível ser feliz?
Só sem a consciência plena
Do mal tamanho que encobre
O que há de bom nas consciências,
De puro nos corações.


Retro sei: o mal que é feito
É menor que o mal que é.
Pois o mal que o demo gosta
Não é o ele da ação má,
Mas o do homem que é mau.
Não o mal simples, do ato,
Mas o complexo, da essência.
Esta a sua trajetória:
Cada vez mais para o fundo.

Hem? Hem? Ah. Lembrança torta
Que grande pena que dá...


Campinas. 24/7/2014









Trinta e sete


“A gente cresce sem saber para onde.”


Eu queria, belamente,
A poesia pura e boa,
Desfocada: qual lembrança
De infantis felicidades.
A minhas, ou de meus filhos,
Tanto faz e tanto fez;
Mais para cá. Para lá?
Toda infância é uma só!
Toda infância é perfumosa...
Ou a não ser que não seja,
Por má violência ou crime,
Por barbaridades outras
As cujas o demo aplaude.
Mas a infância bem feliz
A gente vê desfocada,
Qual paisagem na neblina,
Ou vista de olhos chorosos.
Exatidão entristece.
Tudo alegre é fugidio
Como o pio fugaz do cuco.
E também do bem-te-vi?

Lugavozônios do André:
Altos ou baixos estavam,
Indicando a energia
Do salto, corrida e pulo.
Regulamento da alma,
O forte-fraco notáveis.
Eles: os percebimentos.
O mundo uma arena: circo.
De cores rodopiantes,
Surpresas e sustos. Risos.
Circo: todo faz de conta.
Menos os malabaristas,
Os trapezistas e o resto.

 Alexandre, com doze anos,
Carregando o Dom Quixote
Para os recreios da escola.
Volumosa narrativa:
As hilariedades mis.
Findou as muitas leituras?
Livro nunca se termina,
Por mais que ao ele se finde.

Fio de linha amarradinho
Na cintura da cigarra.
E lá vai ela, empinada,
Tão qual como uma pandorga,
Voejando a liberdade
Nos mesmos tempos bem curta
E também bem divertida.
Ideação de criança.
Bole e rebole. Tem fim?

Toda infância é esperançosa?
Os dedos dos pés no barro,
Olhos e ouvidos na chuva,
Os cabelos em vertente.
Tudo numa baita chuva.
Na grama se escorregava,
Mãos e joelhos tingidos:
A verdura do brinquedo.
Pelada no chuvaréu:
Não era não de jogar,
Era chafurdar molhado
Caindo sempre que quando
Para mais se remolhar.

Os risos desnuviosos
De uma alegria simplíssima.
Toda dor era somenos,
Coisa de adulto-velhices.
Tinha joelho ralado,
Picada de marimbondo,
Grudices de carrapatos,
Insolação, pesadelos.
Os sonhos repetitivos
De gritar por pai e mãe,
De ficar mudo p’ro grito,
De suar bem frio. Terrores?

 Relance do corredor,
Laz amarelada acesa,
Um novelo de lã vem
Desenroloso, malvado.
O rastro de fio p’ra tás.
Então se punha a crescer,
Enormemente! Estufoso!
O pavor sem voz me alçava,
Chorava sentado. Hirto.
Surreabilidade toda,
Repetitiva, capeta.
Tem sentido este terror?
O surreal pavoroso?

Sofrer de infância é esquecido,
Se não for em demasiado.
Se corre, brinca e se ri
E as dores já são antanho.
Beijo de vó cura tudo,
E os anjos cantam novenas.

Tinha as bolhas de sabão
Em canudos de mamona.
Balouçantes, tremulosas,
Feitas só de quase nada.
Revestidas de arco-íris,
Avoejantes. Tão mágicas!
E bolha dentro de bolha:
Surpresamente lá presa.
Travessuras. Os enfins...

Lavar o carro do vô
De água com querosene,
E ganhar o trocadinho
Para comprar figurinhas.
As elas! Surpresas muitas,
Das que tinha e que não tinha.
Abrir o envelope: festa.
O bolo de figurinhas,
Tidas dupla ou triplamente,
Carregado para a escola,
Para as calçadas, as praças:
Trocar pelas das lacunas,
No negócio negociado,
Ou lá batendo os montinhos
Para ver o que virava.
P’rá quem torce Deus, na sorte?

 Esquiávamos no rio.
O Guaíba. Esparramoso.
Navegava-se sem vento,
Num prumo plano e lisinho,
Uma planície ribeira,
Se se ia pelo Conga,
E pelo Furado Grande,
Também pelo Furadinho.
No Saco da Alemoa,
Entre a dita Ilha das Flores
E a Ilha dos Marinheiros,
Também era esconderijo
Dos ventos tumultuosos
Que, subindo alvoroçados,
Do sul da grande Lagoa,
Quase nos roubavam grandes
E memoráveis passeios.
Ventos soprosos-soprosos.

E não havia os carrinhos?
Fabuloso trem elétrico?
Bolinhas de gude. Elas!
Mas tudo isso é muito longo,
Pertence a outra poesia...
Não é a infância infinita?
Para a frente e para trás?
Ela é, ela é, é!
Tão desmesuradamente.


Campinas. 29/7/2014
Para André Danesh e Alexandre Nabil Beust

























Trinta e oito


“Felicidade se acha é em horinhas de descuido.”


Carrinhos eram Matchbox,
De rodinhas bem ligeiras
E mil cores e formatos.
O brincar podia ser:
Devagar, estacionado,
Pelas ruas dos tapetes;
Garagens sob as poltronas.
Os cinzeiros eram praças,
Ou balsas, cruzando rios.
Igual ao mundo real.
Igual menos a maldade.
Mas eram também velozes,
Nas grãs pistas amarelas,
Com direito a saltos, loopings,
E disparadas certeiras.
O domínio da alegria.
Possuimento do riso.
Aquilo: lá e acolá.

Os carrinhos. Os Matchbox.
Por onde foram sumindo?
Ai! Onde vai parar tudo
Que perdemos lá na infância?
O medo de lobisomem,
O medo de assombração?
Num certo colo: a cabeça;
Na cabeça: os cafunés.
Infância: é lá só doçuras?
Queria dizer que sim,
Mas, triste, bem sei que não.
Há muita infância pranteada.
Há muita infância atroz.
De chorar eternamente?

 Mas eu tinha um trem elétrico
Que o vô trouxe da Alemanha.
Märklin. Perfeito! Tão eito!
Circulava entre estações,
Carregava seis vagões,
Para trás e frente ia.
De Porto Alegre a Gramado,
De Gramado a Nova Iorque,
De Nova Iorque a Paris.
A Tóquio, Praga, Munique,
Bariloche, Buenos Aires,
À Lua, Saturno, Vênus,
Mercúrio, Júpiter, Marte.
E infinitas dimensões.
Ainda não existia
O trem que levava a Hogwarts...

Draco dormiens nunquam
Titillandus. É. Pois é.
O trem passava sob livros,
Abertos em cabaninhas.
Outro trem mais erudito
Não houve e não haverá.
Cruzava os mundos de Mann,
De Schiller, Goethe, quem mais?
Todos sempre em alemão.
Meu trenzinho poliglota...

Se cruzava com carrinhos?
Pois que sim! Os carregava!
E areia, feijão, arroz.
Os grãos das romãs: rubis.
Cacos de vidro: diamantes!
O mundo não acabava
E eu era rico, bem rico:
Um castelo não sei onde...

Tive sarampo com febre,
E catapora com febre
E febre de sol demais.
Não tive a febre do ouro
Porque eu já tinha um trem
E um castelo... Onde será?

 Moldava bolas de barro
E enfiava nelas folhas:
Iam todas para o fundo.
Quando o barro dissolvia,
As folhas, tantas, voltavam:
Eram submarinos, todas,
A mergulhar e a voltar,
Em viagens misteriosas.
A piscina se manchava,
Algum adulto ralhava,
Mas eu fazia de novo.
Teimosia de criança
É, lá, certeza de vida?

Tio Érni nos ensinava
A fazer veleiros ágeis:
Uma lasca de madeira
Aplainada e bem bicuda;
Um talho no meio, embaixo,
Fixava a quilha. Outro mais,
Na popa, fazia o leme.
Palito fixado em cima,
Papel de pão recortado:
Lá estava a vela: funável.
Dez centímetros de largo,
E as náuticas surpresas:
Zigue-zagues inclináveis,
Velas na água, molhadas,
E o resgate com vassoura.
Mas porém não naufragavam.
O trenzinho também não.
Trem e barcos: semelháveis.

Tia Marga era o carinho,
Tia Binha a elegância.
E tio Ico me impedia
Ai! De ser filho do avô.
Mas neto tem mais vantagens;
Neto é filho duplamente
De pai que já foi treinado
E passou pelas paixões.
Fazer geleias com a vó,
Lavar o carro c’o vô,
Tudo nas luminescências
De dias bem infindáveis
Das altitudes da Serra.

 Passeávamos nos trilhos,
Da via férrea esquecida;
Recolhíamos os cravos,
Grandes – de crucificar.
Passos largos nos dormentes,
Passos curtos sobre os trilhos.
Caídas folhas de plátanos,
Redentas. Pentapontais.
Os plátanos me emocionam:
Respeitam quatro estações.

É: a infância tem seus cheiros,
Tem seus gostos e seus sons.
Leite condensado, sempre,
Com sagu, morangos. Puro.
Cozido: de comer quente
Só com creme de baunilha.
Tinha o chá de erva cidreira
Perpétuo na geladeira.
As folhas sendo queimadas
Em chamas recrepitantes
E fumaças vaporosas:
Cheiro de melancolia.
E o dos lençóis e cobertas,
O dos armários fechados,
O das roupas dos avós...
Universo de emoções
Com só medo de fantasmas,
De tudo que não existe,
De tudo que não faz mal.

No mais: eram os deleites!
Gostoso: tirar espinho
Que encravou no rodapé.
Agulha, meticulosa,
Escarafunchando, ela,
Na tridimensional pele.
Doía e não doía.
Era o carinho espetado,
O amor escarafunchante,
O cuidado liberal.

Sim. Pois. Era tudo isso.
E muito mais. Que eu não disse.


São Paulo. HP. 30/7/2014






















Trinta e nove


“Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum!” GSV, p. 11


Ai! O homem dos avessos!
Ai, ai! Os crespos do homem!
O anticristo pessoal,
Privado de cada um:
Personalíssimo monstro...
Todo mundo é Dr. Jekyll?
Todos têm seu Mr. Hyde.
A maldades bem malvadas
Nascem da transformação?
O homem vira ao reverso,
Se manda destrambelhado,
Virando o mundo ao avesso,
Jogando sal pela terra,
Pisoteando todo bem.
Monstro mor, alucinado,
Despossuído de siso,
Alucinado de demo,
Embriagado de fúria.
De onde vem o mal que é nosso?
Por que brota em mim o ódio,
A indiferença, o rancor?
Sou eu mesmo que me salvo?
Sou eu mesmo que me dano?
Eu mesmo, nos meus avessos?

Não, o mal não entra em mim;
O mal já está cá dentro,
Embutido em meus pensares:
Ei! Sorrateiro tinhoso.
Bifurcação de minh’alma
Que leva ao céu e ao inferno,
Tão atropeladamente;
Embaralhamento meu.
Subo ou desço desconforme,
Arrebatado por mim,
Nos escolhidos caminhos.
É Deus em mim. Ou o diabo?

 Não houvesse escolha, livre,
Haveria o nosso arbítrio?
Diante de Deus me coloco.
Escolho o bem ou o não-bem?
Não existe o puro mal
Bem lá: nas infinitudes.
O mal é, do bem, ausência;
Vero, mesmo, só o bem:
Todo o mal são as antípodas,
Todos os tantos reversos,
Contraluminosidades.

Toda luz e toda sombra
Existem dentro de mim.
Sou sempre eu que me escolho
Para subir ou descer.
O demônio é o egoísmo
Que está sempre a latejar:
A dor de dente da alma.
Certamente, para baixo,
Todo bom santo me ajuda.
Não preciso do demônio:
Eu sei me danar sozinho...

E é por eu poder fazê-lo
Que sou julgado nos céus,
Que minha alma é pesada
No julgamento de Deus.
O mal é falta do bem,
Como a escuridão é falta
Da luz – pois esta é que existe.
Como um buraco é a falta
Da terra, vera, existente.
Sei: o mal é só desbem...

Sim! Eu me unjo ou me enforco!
Capiroto em meus sapatos,
Satanás a me encarar
Quando me olho no espelho.
Isso eu não adivinhava
Já nas fábulas de Esopo?
Não, não há o mal que existe,
Só há o mal que eu decido.
Tudo o que é bom vem de Deus.
O que é mau vem de nós mesmos.
Contranegativamente.
Aos pulos, sustos e gritos.

 O homem que escolhe o bem
É só lisuras, assopros;
É um quindim no paraíso,
Braço direito de Deus.
O homem que faz o bem
Endireita um pouco o mundo,
Remenda as dores da vida,
Dá sobreexistência às almas.
Todo benfeitor é filho
Dileto de nosso Deus.
Sim: ele escolheu certo,
Se afastou de todo mal.
Sim: sabe que o mal existe,
Mas o conselho do mal
Não é o que ele segue.
Não. Ele escolheu a luz.
Vive nas luminescências
Das auroras boreais
Tremuloresplandecentes
Sobre as colinas da alma.
Tão bem assim. Tão bem. Tão.


São Paulo. HP. 07/8/2014
Para Paulo Roberto de Araripe Sucupira
























Quarenta


“É briga enorme... É um homem... Vou indo pra longe, para a casa de meu pai...” GSV, p. [116]

As casas tantas, as muitas!
Embelezando terrenos,
Alindando tudo em volta
Em belas jurisprudências
De extremo supra-gosto.
Tudo na lindura alegre
Do que é velho e muito novo,
De mãos dadas, assertivos.
Sempre a madeira nos móveis,
De ancestrais demolições,
E os belos quadros! Sorrisos
Espalhados pelas salas.
Várias, tantas, muitas casas:
Cada outra bem mais bela
Que a uma que já havia.
A sofreguidão de lares.
Busca do lar verdadeiro?

As casas muitas, as tantas...
Ubá e Mogi Mirim,
São Francisco e Florianópolis,
E Santiago e Açores...
E, no futuro, onde mais?
Certo que a Morada Eterna
Já a têm em construção.
Aquela. Na eternidade.
Não requer manutenção?
Morada que, de tijolos,
Tem o amor e a compaixão,
E cuja argamassa eterna
É a fé e a humildade.
A casa de encantamentos,
Iridescente de luz.
Não. Não uma casa a mais,
Mas A casa. Tão só. Ela.
A casa de bem e amor
Que espera todos no céu,
P’ra morar na eternidade.
Casa que não é bem nossa,
Mas que é mais de nosso Pai.
Nela nos deu de morar
Na eterna eternidade.
Bem como nos deu o corpo
P’ra morar aqui na terra:
Casa pequena e mortal
De dores, doenças, fístulas
E um dia derradeiro.
As epopeias constantes...

As diversas tantas casas
Alindando tudo em volta.
Jóias de telhado e telhas,
Belezuras de morar.
Cada uma tem um nome?
Se não, deveriam ter:
Casas grandiosas têm nome.

Saint-Exupéry na Ilha!
Quem diria, em Floripa!
Qual a praia em que ficou
O pequeno grande Príncipe?
Foi no Saco dos Limões,
Onde o mal se combatia:
Famigerado escorbuto?
Em qual das mais de cem, certas?
Zé Perri ia ao Campeche.
Lá. Na praia o mar respira.
Grandemente impassível.
Seus grãos olhos transparentes
A contemplar, lá nas praias,
Gerações que se sucedem,
Ocupadas em morrer.
Mar se esparrama na areia
Como língua de mariscos.
As gaivotas na gangorra
Das ondas que sobe-descem.
A infinitude das causas.
Na frente, o mar. Cheio d’água.

Elas. Casas. Muitas, tantas.
Ah! A gente sofre, sofre,
Muito sem querer querer.
Vivendo sempre epopeias...
Sei: entre o tudo e o nada
Há uma muita infinitude.
As ondas se assomam,
Se esticam, arrependidas.
No mar, as ilhas flutuam.
O mar é plano. Lisinho.
Lisurinha bem bonita
De acalmar o coração.
Eu estou bebendo o mar
Com os olhos sedentos
De alguma eternidade?
A incompletude humana...

Essa angústia que nos move...
(Não conheço nenhum médico
Que somente desopere!)
Ai! O horror! O horror! O horror!
O pobre homem, acamado,
Tem que morrer da doença,
Não da tentativa de cura.
E as casas que teve, ou não,
São trocadas habilmente
Pelo asséptico hospital.
Ai! Deus dê-me a morte boa
Na minha cama gostosa,
Com livros na cabeceira.
Não querendo nem a vida...
(Lá fora, um dia crocante.)

As casas. As casas. Tantas.
E lá, dentro das paredes,
Amor, limites e guia.
O acolhimento amoroso...
Há quantos séculos nós,
De verdade, nos amamos?
Aturdimento de mundo...
As cujas algumas coisas...
Mar encrespado de frio,
Mar em síncopes sinfônicas,
E se recolhe em suspiros?
Mar respirando em gorgulhos.
Maré sobre, sorrateira,
E um solitário a correr...

Mal não é quando pecamos,
Mas quando achamos que não.
O barulho do mar. Mar?
Lava a cabeça da gente.
Em Itaquaquecetuba
Eu perdi meu coração.
E minha pronunciação.
Luzes mortiças lá fora,
No meio da madrugada.
E o pensamento fininho,
A paciência bem pacienciosa
De pasto virando leite.
A areia bebe o mar,
Pescadores puxam rede,
Chuvinha de molhar bobo.

As muitas casas variadas,
Mas c’o mesmo coração.
E os tantos olhos, palavras,
São só de amor e carinho:
Não é aqui o Paraíso?
Bendito é o lugar, a casa,
Onde a menção do bom Deus
Foi elevada aos bons céus.
Mas minha toada é triste:
Estou cansado do mundo...
Se não for para ser bom,
Do que vale minha vida?
E lá posso acrescentar
Um côvado à minha altura?
E o mundo então se parece
Bem mais chato que chinelo
De gordo bem gordo. Gordo.
Cachorro corre na praia?
O céu se emenda no mar.
A polimultifonia
Dos grãos silêncios da praia.

Casas. Tantas, muitas casas.
Não de morar. De viver.
Como um túnel vai se abrindo,
Nós deslumbramos mistérios
Que insistem em não dizer
A razão por que vieram.
Beleza pentapontal
Das tão variadas orquídeas...
Reflexo torto das luzes
No mar que parece liso.
E esta poesia, bem ela,
Que é mosaico de palavras,
Pensamento heptassilábico
Do que acho que não sei.
Mas sei das casas. Das elas.
E sinto grandes saudades
Daquelas que não conheço.

Eu vejo o verde bem verde.
Eu verde o vejo bem vejo.
As casas. As casas.
Elas.


Campinas, 23/8/2014
Para Stélio e Tarcísia Granucci