quarta-feira, 15 de novembro de 2017

5. Transcendentalidades

Luis Henrique Beust







Dies Domini
D i a    d o   S e n h o r

Dies Amoris
D i a   d e   A m o r 

 Poesias
Celebração do Bicentenário
do Nascimento 
de Bahá’u’lláh 
(1817–2017)
e do Báb
(1819–2019)



















Capítulo 5


Transcendentalidades





















Passageiro, passageiro










Passageiro, passageiro...
Nada aqui do que era antes!
Nem gosto nem cor nem cheiro;
Nada das paixões flamantes.
De mim, nada resta em mim!
A eternidade sem fim
É feita assim, só de instantes...


São Paulo, 12 de junho de 2012







Será que encontro sossego










Será que encontro sossego
Para a tristeza sem fim?
Dar-me-á a vida arrego
Com perfume de alecrim?
Só sei que em meio ao meu pranto
Aquela estrela do canto
Piscou há pouco p’ra mim...


Campinas, 09 de setembro de 2017
 







Quando aquela escada eu subi,










Quando aquela escada eu subi,
Vi alguém que ali não estava.
E hoje também não o vi...
Pois era um alguém que escapava...
Que sombra era esta, afinal,
Segurando aquele jornal?
Era eu que lá me encontrava?


Campinas, 09 de setembro de 2017








 
No meu Rio Grande o mar é paralelo à praia










No meu Rio Grande o mar é paralelo à praia,
E o céu é paralelo aos dois (até que caia).
São todos infinitos no ponto de fuga,
Costurados de vento ao dia que madruga...


Para minha irmã, Ana Cristina (Neca)
Santa Terezinha, RS, 19 de dezembro de 2009








Batalha aguerrida, forte e feroz










Batalha aguerrida, forte e feroz
Que exige de mim coragem tremenda!
Tenho pela frente meu vil algoz,
Embora sua ira não me surpr’enda.

Busco amparo. Ergo aos céus minha voz!
Ah! Que em meu socorro a bênção descenda!
Oh! Livra-me, Deus, do inimigo atroz
Ou deixa que a luta atroz eu comprenda.

Mas só há o silêncio; tudo se cala...
Ah! Meu peito teme a dor, tem receio,
Tem medo depois que o golpe me veio...

Mas então escuto a voz que em mim fala!
Em meu desespero, o siso interveio:
Entre Deus e o Diabo a luta eu medeio.


São Paulo, 20 de abril de 2011








Feliz quem na vida pôde achar










Feliz quem na vida pôde achar
Um amor a quem chamar de seu.
Este nunca fica sem um lar,
Pois volta ao amor que se lhe deu.
A ventura não escolhe fé:
A vida a semeia de sorteio.
A intensão de Deus diversa é:
Não p’ra ser feliz que o homem veio.
Há outra tarefa, outro intuito
Em vir nesta terra padecer.
Nem mesmo um só ai nos é fortuito;
Viemos aqui para aprender!
Acima de tudo, a grã batalha:
Os teus inimigos são só teus.
E por mais que Deus sempre me valha,
Tenho os inimigos meus, só meus.
Assim o sentido se constrói:
Quem vence o inimigo é um grande herói;
Quem vence a si mesmo encontra a Deus.


São Paulo, 21 de abril de 2011
 







Quando sonho, toda noite










Quando sonho, toda noite
Algo nasce no meu centro.
Às vezes, parece açoite
Com o cheiro bom de coentro.

Outras vezes é um rio lento,
Bem sereno, em dó maior.
Ou um copo só de vento,
O demo ou coisa pior...

Por vezes, ando no céu;
Por vezes no inferno adentro;
Vejo cheiro e som de mel,
Se no azul eu me concentro...
Mas não me deixo assustar,
Pois aprendi que sonhar
É acordar-se por dentro.


Campinas, 8 de abril de 2015
 








Gosto da praia no inverno










Gosto da praia no inverno,
Quando o vento é longo e frio.
Para alguns isto é o inferno:
O mar cinzento e sombrio...
Mas se a chuva vem e chora,
As tristezas vão embora:
Vês? meu coração sorriu.

Os raios cruzam o espaço
E os trovões sacodem tudo.
O bom frio me dá um abraço;
Recolho-me. Fico mudo.
O clima todo conspira,
Sem ter raiva, sem ter ira,
Sem ser malvado ou sisudo.

No inverno a praia é da alma,
Não do corpo passageiro.
A neblina, que me acalma,
Vem e traz do mar o cheiro;
Tudo é doce e transcendente.
A praia se estende em frente;
O mar é meu companheiro...


Barueri, HP, 07 de outubro de 2015
 






 
Qualquer coisa bela é uma joia eterna

           A thing of Beauty
           Is a joy forever
                       John Keats







Qualquer coisa bela é uma joia eterna,
Ainda que brilhasse um só momento,
Pois não, não é o tempo que a governa,
Mas os muitos mistérios deste vento
Que sopra agora em minha face escura,
E que espraia o perfume, bênção pura,
Deste dia chuvoso e sonolento.

Qualquer coisa bela é uma joia eterna,
Se bem que fulgurasse um só instante.
Como a prata no pasto quando inverna,
Como o ouro no Sol que vai radiante.
Tudo dura ou não dura nesta vida,
E a Beleza se faz curta ou comprida:
Existe p’ra levar a vida adiante.

Qualquer coisa bela é uma joia eterna!
— Um pirilampo dura só semanas,
Já uma estrela tem luz sempiterna —
Dirás — São diferentes! — mas te enganas!
Deus somente pensou em as fazer
Depois de os vaga-lumes perceber
A brilhar nas noitinhas d’Ele, arcanas.


Campinas, 29 de dezembro de 2015
 







Ressuscitar é possível?










Ressuscitar é possível?
Certamente! Quem duvida?
Por mais que pareça incrível,
A morte se torna vida.
Com que certeza isso eu sei?
Eu mesmo ressuscitei
Vez e mais vez repetida.

Ia morto num pecado,
Sepultado na tristeza,
Quando um anjo passa ao lado
E me mostra com presteza:
As lágrimas purificam,
E os suspiros já indicam:
Ressuscitei, com certeza.

O que é pó ficará pó;
O espírito vivifica.
Se enterre a carne sem dó:
O que é pó com o pó fica.
O certo é que os nossos eus
São da substância de Deus:
Só a morte a faz mais rica.


Barueri, HP, 14 de agosto de 2017
 







Recebi de Bach consolo










Recebi de Bach[1]  consolo
Para meus ais infinitos.
Segui, entre os tolos, tolo,
Mas não mais entre os aflitos.
A música celestial
Afasta a alma do mal,
Serena e nos põe contritos.

Os acordes das cantatas!
Cantam os anjos  ouviste?
Bach, com suas serenatas,
É prova que Deus existe.
Senão, como alguém já disse,
Que se Ele não existisse,
Eu ficaria bem triste.


Barueri, HP, 07 de julho de 2015


[1] Johann Sebastian Bach (1685-1750), genial compositor barroco alemão.






Rheims era sítio sagrado










Rheims era sítio sagrado
De coroar governantes.
Tão diferente é seu fado!
Não mais é o que era antes…
Os reis, hoje, são turistas
Que nas horas bem previstas
Formam hordas aberrantes.

Não entrei na catedral…
Fui barrado bem na porta.
O guarda, com um sinal,
Me bloqueou… pouco se importa…
Mas vim como peregrino!
Buscando o sopro divino,
Não a bela pedra morta.

Assim, contemplo a coroa
Iluminada no frio.
Um pássaro sobrevoa
A construção de anos mil.
Assim, oro silencioso,
Meus olhos sentindo o gozo,
Sob um céu claro de abril…


Rheims – Campinas, 17 de junho de 2016
Para Thayline e André Danesh Beust
 
 







 
Atendeu-me uma velhinha










Atendeu-me uma velhinha
Numa loja de canecas.
Cuidava dali sozinha
Entre mil e uma sonecas.
Ao din-don da porta abrindo
Ela acordava, sorrindo,
Piscando os olhos sapecas.

Nem um marido, nem filho,
Nem empregado nenhum.
Foto antiga num caixilho,
Roupa sem nenhum debrum.
Com olhar retrospectivo
Nem me percebia vivo:
Mais um fantasma comum.

Entre abantesmas[1] seguia,
Um dia de cada vez.
Outra vez mais, outro dia,
Voltei. Mostrou-se cortês.
Tratou-me com toda calma:
Talvez eu que fosse a alma
Que a levaria de vez...


Frankfurt am Main – Barueri, HP, 09 de março de 2016


[1] Fantasma, assombração.







 
O menino é o pai do homem










O menino é o pai do homem,[1]
Já o disse o poeta inglês...
Tantas coisas vão e somem,
Tanta coisa perde a vez...
Mas quem fui na meninice
É o que me faz na velhice,
Na loucura ou sensatez.

Do que fui, tão pouco muda!
‘inda sou um gurizote!
(Tirando a mão mais ossuda,
(E a voz de serra e serrote.)
No fundo, sou pequeninho,
Sou ainda o tal menino
Que roubou balas do pote.

Quantas camadas de corpo
Coloquei ao meu redor!
Corpo e mais corpo e mais corpo,
A cada dia maior.
Mas segui pequenininho,
Como um filhote no ninho...
(Lá no fundo o meu melhor.)


Barueri, HP, 09 de março de 2016


[1] A frase é de William Wordsworth: My Heart Leaps Up — My heart leaps up when I behold /A rainbow in the sky: / So was it when my life began; / So is it now I am a man; / So be it when I shall grow old, / Or let me die! / The Child is the father of the Man; / And I could wish my days to be / Bound each to each by natural piety.” (A ênfase é minha)











Um sol de milagre à frente










Um sol de milagre à frente,
Ai! mas, ai! cadê o milagre?
Eu sigo torto e doente,
Mais amargo que vinagre.
Mesmo assim, veja você,
Espero uma bênção que,
Vinda do céu, me consagre.

Céu de milagre é bobagem
Inventada por pintores.
Deus não Se mostra na aragem:
Fica só nos bastidores.
O que se vê é ilusão!
O vero milagre, então,
Não tem nem forma nem cores.

O milagre verdadeiro
Acontece na surdina.
Não ribomba bem festeiro,
Nem tem forma que o defina.
É miúdo, dentro d’alma,
E brota na paz e calma;
É dança, sem dançarina.[1]


Campinas, 12 de agosto de 2017
 
 






Um flamboyant majestoso










Um flamboyant majestoso:
Galhos longos de vivência...
Quem me dera um ser frondoso
Ao findar minha existência.
Mas os ventos me quebraram;
Meus ramos crescem, e param.
Sofro amargo na impaciência.

Na impaciência de que passe
Esta vida passageira.
Vejo-me diante do impasse:
Qual a vida verdadeira?
Esta, que é só ilusão?
A eterna, que eu não vi não?
Eis a angústia verdadeira.

Melhor! vou me fazer planta!
Cedro, faia ou jatobá,
E quando o Sol se levanta
Eu me alumio por cá.
Já me cansei de ser gente,
Co’a existência deprimente;
Eu vou ser um manacá!


Barueri, HP, 12 de julho de 2017






Tudo menos a garota[2]










Tudo menos a garota
E a melancolia urbana...
A chuva vem, gota a gota
(Chamava-se Aurora ou Ana?),
As luzes brilham no asfalto,
Os pneus cochicham alto,
Um galho, no alto, abana.

Molhada, a cidade muda:
Tem um quê de paraíso.
Vai-se a eficiência sisuda,
Porém não se perde o siso.
Os guarda-chuvas balançam,
Pés que evitam poças dançam,
Tudo é feito com juízo.

Mas há um frescor no ar,
No colarinho molhado:
Leve transtorno a vagar
No dia bem transtornado.
A chuva molha o atleta,
O homem na bicicleta,
Este anjo do meu lado...


Para Sílvia Lá Mon
Barueri, HP, 31 de julho de 2017


[1] Fritjof Capra, sobre a realidade última do universo: “there are no dancers, there is only the dance”. The Turning Point, cap. 3.
[2] Escuto Everything But the Girl: Amplified Heart.









Ah! o céu segue pesado!










Ah! o céu segue pesado!
É difícil durar tanto
Este cobertor molhado
Que aconchega o nosso pranto.
O céu chove porque Deus,
A olhar os filhos Seus,
Também chora em algum canto.

A chuva me dá consolo:
Tenho coração de avenca.
Quando louco ou quando tolo,
Só me meti em encrenca;
Mas nunca quando chovia,
Pois na chuva aparecia
Tanto anjo! Anjo em penca!

Chuvaradas me são caras.
(Sim! desde que eu não me molhe!)
Co a chuva, se bem reparas,
Não há mal, onde se olhe:
Ladrão fica preguiçoso,
Quer descanso o criminoso,
O assassino se encolhe...

Barueri, HP, 31 de julho de 2017






Quem lê poesia hoje em dia?










Quem lê poesia hoje em dia?
Quem contempla sua beleza?
A métrica é grande guia:
Cadência da Natureza!
As rimas nos dão conforto:
Neste mundo um tanto torto
Nos dão alguma certeza.

Poemas têm motu proprio,
Não é o poeta que os faz.
Também não seria impróprio
Dizer que há algo por trás:
Cada poema que nasce,
Quando mostra a sua face.
Diminui as coisas más…

É por isso que há poesia:
Ela cura o universo;
Se à noite segue o dia
É porque nasceu um verso.
Mesmo que se não a leia,
A poesia é Santa Ceia;
Nela comungo e me imerso.


Para Gabriel Marques
Campinas, 17de junho de 2016






Se poesia fosse d’ouro










Se poesia fosse d’ouro,
Enterrada em mil rincões,
Quem não buscava o tesouro,
Entre agrura e solidões?
Mas poesia é coisa pobre,
Apesar do ofício nobre,
E não desperta paixões.

Poesia não dá riqueza,
Poesia não dá poder;
E por isso, com certeza,
Poetas têm de sofrer.
E da dor e dos suspiros,
Refugiados em retiros,
Fazem poesia nascer.

E ela nasce para nada,
Sem uso ou utilidade.
Que se faz com a danada?
P’ra que serve, de verdade?
Deixemos de besteirol!
A poesia é como o sol:
Dá luz, calor... e saudade.


Campinas, 12 de agosto de 2017






Se eu não mais puder fazer










Se eu não mais puder fazer
As poesias que me fazem,
Ah! melhor fora morrer,
Virar pó, como os que jazem.
Vida sem poesia é morte!
Desmorona o que era forte...
Certezas se liquefazem...

Uma lágrima estudada
Pela Química certeira,
Mostrará do que é formada,
Em sentença derradeira.
Mas se ela é de tristeza,
Ou de alegria, é certeza,
Não dirá, queira ou não queira.

Tanto nos diz a Poesia,
Que a Ciência não dirá!
Outro dia, triste eu ia
C’o que veio e o que virá...
Já o pensamento a esmo...
Encontrei consolo, mesmo,
Nas flores de um manacá.


Para Diana e Carlos Alcântara
Barueri, HP, 05 de julho de 2016






Amor é como chamamos










Amor é como chamamos
O amor antes da ferida;
Depois, o renomeamos
P’ra condizer com a vida:
Amor se chama perdão
Quando, em meio à aflição,
Se esquece da dor doída.

É amor antes da pena;
Depois do golpe é perdão.
No amor o perdão acena;
Junta-se a mágoa: é perdão.
Usado antes, é amor;
Se depois, seja onde for,
É amor, mas é perdão.

O amor serve para o antes;
Ele ali faz sua obra.
Mas os erros bem flagrantes
Exigem outra manobra:
O perdão ata a ferida,
O perdão concede vida,
Perdão é o amor que sobra.


Barueri, HP, 06 de março de 2017






As praias da minha infância










As praias da minha infância
São claras e silenciosas.
Tanto medo e tanta ânsia
Sobre areias vaporosas....
Tinha medo de ciganos,
Remoía desenganos,
Temia aquilo que gozas.

O barulho azul do mar
Me acalentava de noite;
Os sapos, a coaxar,
Roubavam do breu o açoite.
Só tinha medo de mim,
Por me saber tão assim
Qual passageiro pernoite.

Entretanto, durei mais
Do que imaginei durar.
Foram-se os risos e os ais,
Nada me pôde matar.
Fica a praia na distância,
Sem mais nenhum medo ou ânsia,
Só o barulho azul do mar.


Para minha irmã Ana Cristina (Neca)
Campinas, 26 de dezembro de 2015






Dir-te-ei grandes palavras[1]










Dir-te-ei grandes palavras
Que são sopradas do alto...
Minhas obras, minhas lavras,
Tomam-me assim por assalto.
Não sou eu quem faz poesias
— Quem as faz, então? — dirias...
Outro as faz, quando eu me falto.

Só quando esqueço de mim
É que a poesia acontece.
Jorram ideias sem fim
E a poesia a si se tece.
Não, não sou eu quem as faz;
Disso eu sei — sou incapaz! 
(Mesmo que musas tivesse....)

A poesia é que me faz,
Pois me dá alento e vida.
Toda a dor que a vida traz
Fica dor não tão sofrida.
Agradeço a Deu por isso:
A poesia me deu viço
E uma esperança comprida.


Campinas, 15 de setembro de 2017


[1] Augusto Frederico Schmidt: Compreensão — “Eu te direi as grandes palavras,/As que parecem sopradas de cima.” 








Escuto a grande missa em si menor










Escuto a grande missa em si menor,
E os anjos perambulam pela casa.
Sim, por certo a conhecem bem de cor
(O que agora passou raspou-me a asa!).
Ah! Anjos distraídos, descuidados,
Na magia dos sons sobrencantados!
Esse é o único fogo que os abrasa.

Pois... Bach[1]  reúne assim a terra e o céu,
E põe aqui os anjos andarilhos,
Que vagam pelo mundo em fora, ao léu,
Levando para o céu seus novos filhos.
Mas o que vêm fazer, bem na verdade,
É cá buscar dos sons a majestade:
No céu só tocam harpas e estribilhos.

Passaram ali três anjos sisudos...
Não lhes terá prezado a orquestração?
Entraram bem calados... (Eram mudos?)
Mesmo os anjos têm vária opinião...
Gosto que a casa assim fique tão cheia;
Ó seres imortais, vinde! Fazei-a
Um pedaço do céu ao rés do chão.


Para Bijan Ardjomand
Campinas, 29 de dezembro de 2015


[1] Johann Sebastian Bach (1685-1750), genial compositor barroco alemão.






Eu sorvo o 2001![1]










Eu sorvo o 2001!
Me prende como um abraço.
É arte sobrecomum
P’ra se embalar no regaço.
Se pensarmos bem direito,
O Danúbio Azul[2] foi feito
Para o bailado no espaço.

As músicas e o silêncio,
Tudo fala de mistério.
(P’ra rimar temos Terêncio!)
Mas o assunto é bem mais sério!
Como é que a arte consegue
Divisar o que se segue?
(Agora venha Tibério!)

Perdi a conta das vezes
Que assisti à obra-prima...
(Que venha agora Menezes
(Para salvar esta rima!)
Que bela a Terra no espaço
Sem freio, sem embaraço,
Sem em baixo e sem em cima!


Barueri, HP, 17 de abril de 2017


[1] O filme 2001: Uma Odisseia no Espaço, obra-prima de Stanley Kubrick, de 1968.
[2] Belíssima valsa de Johann Strauss II (1825-1899) utilizada por Kubrick para embalar a famosa dança da espaçonave e da estação espacial no começo do filme.









Gosto do céu encoberto










Gosto do céu encoberto,
Deve ser por seus mistérios.
Não se sabe ao certo
Que há nos sítios aéreos:
O Demo, com sua escória?
Ou Jesus, descendo em glória?
(Os que estão nos cemitérios?)

Só sei que é aconchegante:
Um véu tapando o infinito.
Não sentir, a todo instante,
A pequenez e o conflito
Do mundo diante do Sol,
(Na magia do arrebol),
Que põe o homem contrito.

Quando as nuvens são pesadas,
Parece que Deus não vê
As faltas e trapalhadas
A unir eu, tu e você.
Parece brincadeirinha;
Sob os lençóis, sempre eu tinha
Um frisson não sei do quê.


Barueri, HP, 31 de julho de 2017

 




Nem todos os anjos podem










Nem todos os anjos podem
Ficar lotados no céu.
Os que lá não se acomodem
Ficam cá, vagando ao léu.
De repente, então, se enfadam,
Nas ondas das brisas nadam,
Convertem algum incréu...

Não existem indolentes
Nos anjos da terra e céu.
São nobres, fortes, valentes,
Mas cobertos por um véu.
Deus, somente, é quem os vê,
Enquanto fazem mercê
De limpar do mundo o fel.

É de suas asas o vento,
De seus suspiros a brisa.
Os anjos nos dão alento
Quando alguém deles precisa.
Vem, chega-te mais aqui;
Deixa sentar um ali,
Ver se mi’a dor ameniza...


Campinas, 14 de agosto de 2017

 





Notre Dame de Laon










Notre Dame de Laon,
Lá… sobre a grande colina…
Não emite nenhum som,
Mas canta, sobre a neblina,
Cantos góticos de antanho,
Chamando o fiel rebanho
Imerso na névoa fina.

O sol rompe a cerração
E a grã catedral rebrilha.
O mundo: um oceano vão,
E a catedral: uma ilha.
Ilha de fé e beleza,
Paira por sobre a tristeza,
Sobre a dor, que é sua filha.

São só pedras esculpidas,
Pálidas como um espanto;
Quantos homens, quantas vidas,
Juntam a voz no seu canto!
A catedral canta aos céus
E lá, bem por trás dos véus,
Vejo um gigante anjo santo…


Para Thayline e André Danesh Beust
Laon – Campinas, 16 de junho de 2016

 








O azul assovia alegre

“A arte é a construção de relações inusitadas.
                                   Flávio Azm Rassekh (08/7/17)








O azul assovia alegre
Lá, sobre os céus altaneiros.
Busca algum anjo que integre
O batalhão dos lanceiros.
O sol dourado passeia
Entre as três e as cinco e meia...
(Eis que já vão os primeiros.)

Esta nuvem que ali passa,
Tão disciplinada e airosa,
Não flutua ali de graça
(Muito menos sendo rosa);
Esconde cem mil cupidos,
Todos eles decididos:
Flechar umalma penosa.

O cabelo desta grama
Em corte estilo escovinha,
Me serve também de cama
Para a preguiça que eu tinha.
Deitado, não penso em nada...
E então, certeira flechada
Me trouxe o amor que eu não tinha.


Para Flávio Azm Rassekh
Campinas, 09/7/17
 
 





Estou cansado de mim










Estou cansado de mim...
É... já não mais me suporto!
E está sendo sempre assim,
Quando endireito ou entorto...
Não me basta melhorar;
O que quero é apagar
Quem eu sou: ver se me aborto...

Não se trata de morrer;
Não contemplo o suicídio.
Eu tenho por que viver,
Minha fé me dá subsídio.
Mas quero nascer de novo,
De um recém chocado ovo...
(Cometo sincericídio?)

Quem eu sou já não me basta.
Não se trata de crescer...
Só quando a pedra desgasta
Pode o brilho dar-se a ver.
Não é mais de mim que busco!
Nesta idade lusco-fusco
O que eu quero é não me ter.

Sei que é quando me esvazio
Que tomas conta de mim.
Se a vida vai por um fio,
É quando Te tenho, enfim.
É no meu vazio que habitas!
Sem mais dores, sem desditas,
Então Te tenho, por fim...


Para a comunidade bahá’í de Mogi Guaçu
Barueri, HP, 19 de setembro de 2016
 
 





 
Quem conhece as grãs tristezas










Quem conhece as grãs tristezas
Bem conhece as alegrias.
Temos bem poucas certezas
Que iluminam nossos dias:
Impostos, a morte e a dor,
Com sorte também o amor
(Ao menos das velhas tias).

Como cegar-se de luz
Sem ter visto a escuridão?
Cá nascemos todos nus
E vivemos de roldão...
São tantas tristezas somadas,
Tantas tristezas malvadas
Lapidando o coração.

Não há vida sem tristeza,
Nem sublimação sem dor.
Assim se tira a impureza
E talvez se ganhe o amor.
Como um ramo bem podado,
Como faz fértil o arado,
Os ais nos trazem verdor.


São Paulo, aeroporto de Congonhas, 22 de fevereiro de 2016





Se Bach fora um arquiteto










Se Bach[1] fora um arquiteto,
Que teria construído?
Um templo sem chão, sem teto,
Todo de ar erigido?
Pois Bach esculpia o ar
Como o arquiteto, ao nos dar
Espaços, luz e sentido.

Ah! Se Bach fora um pintor
O Cravo Bem-Temperado
Seria impossível flor
Com sopros de arte pintado.
Se um botânico ele fosse
(Que da Natureza apropriou-se),
Seria o cravo estudado.

Se fosse ele um dançarino,
Seus saltos em rodopio
Seriam dobres de sino,
Seriam ondas de rio.
Nada estaria dançando,
Só o coração latejando,
A ausência do que se viu...

Se Bach fora Deus... sim, Deus!
Lavaria meus pecados,
Tiraria os erros meus.
Sons vindos de todos lados,
Sem ter quem os tocasse
(De outro tipo, outra classe),
Mudariam todos fados...


Para Bijan Ardjomand
Campinas, 03 de julho de 2016


[1] Johann Sebastian Bach (1685-1750), genial compositor barroco alemão.
 
 





Se eu me for no anoitecer










Se eu me for no anoitecer
Quantos versos levarei?
Nem tu podes responder,
Nem tu sabes, nem eu sei...
A Duran[1] foi-se tão cedo,
Mas fez verso tão sem medo;
Que faltou? O que direi?

São nossos dias contados,
Ou fazemos nossa sorte?
São nossos fados nos dados,
Ou tecemos nossa morte?
É certo que há dois destinos:
São tocados como os sinos:
Com mão leve em corda forte.

Um destino já foi feito
Quando o Big Bang explodiu.[2]
Se pensarmos bem direito
Na explosão que ninguém viu
Já Van Gogh aparecera,
Cada maçã, cada pera,
Cada mar e cada rio.

Se um destino é esculpido
De matérias bem bem duras,
Outro o esculpe o Cupido,
Com as mãos belas e puras.
Há, portanto, um outro lado:
Quem fez Vincent foi o Fado,
Mas Vincent fez as pinturas...


Campinas, 03 de julho de 2016 


[1] Dolores Duran (1930-1959), grande cantora e compositora carioca, falecida com 29 anos.
[2] A grande explosão primordial que deu origem ao universe conhecido, há cerca de 13,8 bilhões de anos.










Recém saíste da sala










Recém saíste da sala,
Mas tua luz ainda está.
Uma luz que o bem exala,
Luz que nunca acabará.
Escolheste sempre o bem
Sem nunca olhares a quem:
És flor de maracujá!

Construíste o paraíso
Para ti e para os teus.
E, se bem eu analiso,
Teu ajudante foi Deus.
Construímos o destino
Com razão ou desatino,
Sejamos reis ou plebeus.

Tantos miúdos na terra
Serão gigantes no céu!
Quem ao mundo não se aferra
Enxerga por trás do véu:
O mundo o já não engana...
(Olha! o anjo que te abana!
(Teu destino é leite e mel.)


Para Rafaela Souza
Barueri, HP, 27 de setembro de 2017
 
 





Eu fiz geleias de amoras










Eu fiz geleias de amoras
E fiz de jabuticabas.
Gastei não sei quantas horas
Puxadas, quentes e brabas.
Mas elas ficaram boas,
Receberam muitas loas!
(Já vou fazer de goiabas...)

As frutas foram colhidas,
Depois lavadas com jeito.
Então co’ açúcar fervidas
Até o ponto perfeito.
(Se a gota esfria num pires
(E não escorre, é bom ires
(Te sentindo satisfeito.)

Coloca a calda ‘inda quente
Em vidros bem escaldados.
Tampa os vidros firmemente,
Deixa esfriar sossegados.
A geleia assim perdura
Mais que década, bem pura,
Para fazer bons agrados.

Se houvera receita assim
Para adocicar as almas,
Por certo seria assim:
Um mundo cheio de calmas...
Calma no peito e no lar,
Sem nações mais a brigar...
Ai!... quero geleia de almas!


Barueri, HP, 05 de julho de 2016
 
 





Já cansei dos meus pensares,










Já cansei dos meus pensares,
‘stou enfadado de ser...
Para todos meus pesares,
Não é solução morrer.
O que eu quero é rendição!
Não lutar por ser mais, não!
Só ter a paz do não-ser...

Eu quero dormir lagarta
E despertar borboleta!
A existência já me é farta,
(Essas pernas todas... êta!)
Meu Doppelgänger,[1] cadê?
Há que apagá-lo, porque
O meu duplo é do capeta.

Eu quero não ter vontades,
Eu quero não ter mais eu.
Em todas realidades,
Se foi bom, ou se doeu,
Quero só o que Tu queres,
P’ra que em mim só Tu imperes:
E quem eu era morreu.

Mas este renascimento,
Esta extrema mutação,
Não vem ao sopro do vento,
Não muda com a estação.
É na dor que Tu lapidas
As joias de nossas vidas,
A gema do coração.

Das dores todas que eu tenho,
A maior é de eu ser eu...
Não, não feches o teu cenho!
Já te explico o que se deu:
Perder o ego é a vontade,
Sem perder a identidade;
Render-me... pois Deus venceu...

Estar vazio de quereres,
Estar vazio de quem sou...
Buscar no Alto os poderes
Que me levam aonde eu vou.
Abandonar o desejo
De abandonar o desejo
E ficar co’ que restou.

Lapide-me a vida tanto
Que eu me veja pobre e nu.
O vento será meu manto,
Mil fomes, o meu menu.

E ao bater em Tua porta
Dirás: “Quem bate?”, e a alma, morta,
Te responderá: “És Tu!”


Para a comunidade bahá’í de Mogi Guaçu 
Barueri, HP, 19 de setembro de 2016


[1] O “Doppelgänger” (literalmente o “duplo andante”, em alemão) é, no folclore e na ficção germânica, um “duplo” ou “gêmeo” de uma pessoa, muitas vezes compreendido como um “gêmeo do mal”. Pode se bem aplicar o termo ao conceito de “ego” nas Escrituras Sagradas.









Um eu meu me põe contente










Um eu meu me põe contente,
Um eu meu me arrasa e fere.
Por que é que eu sou tanta gente?
Um eu que sempre difere?
Uma flor é uma flor,
Sem ser múltipla, sem dor;
Em mim, mais eus que eu numere.

Sempre que desejo e quero,
É outro eu laborando.
Preso de um vício sincero:
Num novo desejo achando
A ilusão de ser total,
Acima do Bem e Mal,
Eu único dominando...

Mas, como um caleidoscópio,
Já muda a cena e o eu
Que, buscando um novo ópio,
Também se perde no breu.
Nem o choro nem o riso
Indicam, nos eus, o siso,
Ou apontam qual venceu.

Só no não-eu que descanso...
Só no não-eu tenho paz!
Se esqueço de mim alcanço
A recompensa que dás:
Um não-eu uno Contigo,
Não mais um eu que eu maldigo!
Não há mais eus: só Tu hás...


Barueri, HP, 23 de janeiro de 2017
 
 






Quando eu desisti de ser










Quando eu desisti de ser,
Então é que fui feliz.
Real ventura é não-ser
(Assim meu coração diz).
Quando tanto e tudo quero
É quando me desespero
(Sou da alma um aprendiz)...

Quando dei tudo o que eu tinha,
De esperança e de certeza,
Foi quando nasceu a vinha
Mais bela da natureza.
Bebi o vinho que eu fiz,
E o vinho me fez feliz:
Vem! cantemos junto à mesa!

Quando lembrei de esquecer
De minhas penas e dores,
Tu fizeste aparecer
Lembranças com bem mais cores:
Eu então lembrei de Ti,
Fiquei alegre e sorri...
Quero ir por onde fores.

Quando eu me ceguei ao mundo,
Pude enxergar de verdade.
Todos cremos, lá no fundo,
Que é bem falsa a realidade:
A verdadeira existência,
Comungar com Tua Essência,
É nada ter, sem saudade.


Barueri, HP, 08 de agosto de 2016
 
 





Melancolia soberba










Melancolia soberba
Me abate de todo lado!
E quando a dor se exacerba,
Bendigo meu triste fado!
São Paulo é meu vizinho:
Na carne tenho um espinho
Que me põe amortalhado.[1]

Não fosse este monstro vil
Que me dilacera o imo,
Não fossem as dores mil
(Eu as acolho e as estimo),
Que seria de minh’alma?
É espinho que me acalma,
E procuro Teu arrimo.

Ó Deus, meu Deus! que alquimia
Fazes no mundo do ser!
Um pobre que ali se ia
Ganha um reino p’ra reger.
No oco dalma, o universo;
Um santo se põe perverso,
O alquebrado tem poder...

Obrigado, ó meu Senhor,
Pela pedra de tropeço.
Sem a vergonha e a dor,
Eu errava o endereço.
O endereço de Tua Face,
Do amor que só de Ti nasce,
Que me dás e não mereço.


Barueri, HP, 08 de agosto de 2016




[1] 2 Coríntios 12:4-10 — “para que a grandeza das revelações não me levasse ao orgulho, foi-me dado um espinho na carne”.

 





O que foi já foi... Sigamos!










O que foi já foi... Sigamos!
Não somos só o passado.
Existe o tempo onde estamos,
E um futuro a ser criado.
Bem sei que arrependimento
É mudar comportamento:
Sair do breu p’ra o outro lado.

Pois não adianta chorar
Sobre leite derramado.
Sim! é voltar a pecar
Ficar chorando um pecado.
O que está feito está feito:
Se perfeito ou imperfeito,
Assim o escreveu o fado.

O se é dura prisão...
Ah! se eu não tivesse feito!
Se não caíra no chão...
Se não tivesse defeito...
Se o navio não afundasse,
Se a bola acertasse o passe...
Se só fora de outro jeito...

Querer distinto o passado
É pura vã fantasia...
Devíamos ter mudado
A ação quando ela ia.
Só há agora um caminho:
Desculpar-se c’o vizinho,
E seguir por outra via...


Para Milton Mandel 
Campinas, 03 de julho de 2016











Os cães presos nos quintais










Os cães presos nos quintais
Não sabem p’ra onde eu ando.
Latem muito, desiguais,
Não sabem se eu volto ou quando.
Não podem me fazer mal;
Seu latido desigual
Faz volume quando em bando.

Pobres cachorros furiosos,
Que latem p’ra cada gente;
Não sabem se perigosos
Os que passam lá em frente.
É para os passos que latem,
Correm, pulam, se debatem
Sem um perigo aparente.

Prisioneiros do latido,
Seguirão latindo forte
Quando eu me já tiver ido,
Quando eu buscar outro norte.
São cegos ao meu destino,
Pois o seu afã canino
Seguirá até à morte.

Muitos homens também latem
Quando a mim ouvem passar.
Na sua fúria, se debatem
Sem que possam me alcançar.
No quintal do ego estão presos
E nós passamos ilesos,
Sem medo do seu ladrar.

O latido denuncia
Quem é livre e quem é preso.
Enquanto, livre, eu me ia
Quem ladrava ia surpreso:
O ladrar não para o mundo;
Numa fração de segundo
Quem ia seguia ileso.


Barueri, HP, 19 de abril 2017
 
 





Parado em casa, patético










Parado em casa, patético,
Quando o mundo todo, em volta,
Se agita num ar atlético:
Palmas bate e gritos solta.
As Olimpíadas correm,
Na Síria crianças morrem,
E eu me vejo amargo e cético.

Desconfio dos discursos
Sobre a paz universal,
Pois como selvagens ursos
Cada homem é feral.
A unidade é só um verniz...
(Que delegação não quis
(Dar a mão ao seu rival?)

Vasto é o abismo entre os homens,
Se não há Deus entre eles,
Pois julgam com seus abdômens,
Nem há transcendência neles.
Se o horizonte é o umbigo,
O mundo corre perigo
De um rebuliço daqueles!

Se é a cada quatro anos
Que o mundo confraterniza
O dom de sermos humanos,
Não é o que o mundo precisa:
É em cada amanhecer
Que o mundo precisa ter
Um amor que se eterniza.


Campinas, 17 de setembro de 2016
 
 






Ai! Tanto prazer se busca










Ai! Tanto prazer se busca,
Que depois prazer não é...
Só uma miragem que ofusca,
E confunde a nossa fé:
Cremos que será grande,
Mas na hora em que se expande
Já nos bota em marcha-a-ré.

Eu quero um prazer bem frágil,
Qual asas de borboleta.
É, portanto, belo e ágil,
Simples que nem opereta:
O prazer que não se esgota
Do cheiro da bergamota
— Lá não se esconde o capeta...

Os prazeres verdadeiros,
Os que Deus mesmo nos dá,
Encontram-se nos pinheiros,
Florescem no manacá.
Deles canta o tico-tico
(Mais que Salomão, é rico!),
Como o tordo e o carcará.

Os prazeres bem eternos
Nem traça nem cupim comem;
Vêm dos bafejos supernos,
Não são criados por homem:
São um ser-não-ser divino,
Um despertar matutino;
Quando nascem, jamais somem...


Barueri, HP, 08 de agosto de 2016
 
 






A poesia é necessária










A poesia é necessária
Como é necessária a vida.
Nenhuma é prioritária,
Nem pode ser preterida.
Se há vida, é que há poesia!
E, em gesto de cortesia,
A poesia vem da vida...

Qual é causa? Qual, efeito?
Há versos que criam mundos,
Sem erros e sem defeito.
Em seus sentidos profundos
Ajeitam a própria vida...
A poesia, quando lida,
Torna os homens mais fecundos.

Mas também a vida cria
Os versos mais aparentes;
Poesia com nostalgia
Dos autores recorrentes.
Se não houvesse esta vida
A poesia aqui nascida
Seria oculta das gentes.

É Deus o grande Poeta,
Ou é a grande Poesia?
Mais humano, se Poeta;
Mais mistério, se Poesia.
Sei que prefiro o Mistério...
Mas Deus é assunto sério,
E já beiro a heresia...


Barueri, HP, 05/7/2016
 




A batata, quando dorme










A batata, quando dorme,
Põe a mão no coração;
A menina, quando nasce,
Se esparrama pelo chão.
Que mundo desembestado!
Loucura por todo lado
(Inverno sendo verão)!

Lá detrás daquele morro
Passa boi, passa boiada;
Se eu quiser pedir socorro
Vou correndo pela estrada.
O homem que com ferro fere
Fere-se antes que espere,
Ou come fruta estragada.

Atirei um limão verde,
De pesado foi ao fundo.
Verde que te quero verde,[1]
Meu nome não é Raymundo.[2]
Atirei um pau no gato
Que corria atrás do rato...
Gira vida; gira mundo.

A barata diz que tem
Sete saias de filó.
Nem vem, barata, nem vem!
Tua saia é só de pó.
Um sapato de fivela
Diz que tem; mentira dela:
Ela é pobre de dar dó.

Esse mundo é uma ciranda:
Roda tudo à nossa volta.
É p’ra frente que se anda,
E o passado nos escolta.
Capelinha de melão
Dizem que é de São João...
(Vejo o povo e a revolta.)

Caranguejo não é peixe,
Caranguejo peixe é;
Se não queres que eu me queixe,
Vê se larga do meu pé.
Este mundo é maravilha
P’ra quem ganhou uma filha,
P’ra quem segura na fé.


Para Livia Vieira Beust 
Campinas, 12 de outubro de 2017


[1] “Verde que te quiero verde. / Verde viento. Verdes ramas. / El barco sobre la mar / y el caballo en la montaña. [...] Federico Garcia Lorca: Romance sonámbulo.
[2] “Mundo mundo vasto mundo, / se eu me chamasse Raimundo / seria uma rima, não seria uma solução.” Carlos Drummond de Andrade: Poema de Sete Faces.










Desfrutei tanta beleza










Desfrutei tanta beleza,
Nas trilhas tristes da vida,
A ponto de ter certeza
Que ela a fez menos sofrida.
O Belo cura e anima,
Conduz a alma p’ra cima:
Aos céus, a alma, convida.

Praga é joia inestimável,
O Lake District[1] é divino;
Londres é inenarrável,
E Paris é trato fino;
Chartres não é desse mundo,
Laon não fica em segundo
(Cada catedral é um hino).

Sem Bach, o que era a existência?
Sem Cézanne, p’ra que a visão?
Haydn trouxe a quintessência
Da alegria... sim, ou não?
Van Gogh mostrou a verdade:
Para a alma, a liberdade
Vem do alto, não do chão.

Monet, Paul Klee, tantos mais,
Adornaram o universo.
Foi como brisas vernais,
De Pessoa, cada verso.
Shakespeare fez a humanidade,
Cervantes lhe pôs bondade;
Rosa: em mistérios imerso.

Beleza tanto nas Artes,
Assim como nas Ciências.
Beleza por todas partes,
Vida breve... (reticências)
Minh’alma voa a Gramado
— Sítio belo e muito amado —
Singrando num mar de hortênsias.


Barueri, HP, 18 de maio de 2017




[1] Belíssima região ao noroeste da Inglaterra, repleta de montes e lagos.
 
 





Paulinho se foi… morreu…










Paulinho se foi… morreu…
Quarenta anos distantes…
Nem mais ele, nem mais eu
Somos quem éramos antes.
E, apesar dessa distância,
Sinto uma angústia e uma ânsia
E uma saudade gritantes!

Por que a vida nos separa?
Cadê Norbert, Karl, Moisés?
A juventude, repara,
Fez de ti o que tu és.
Todos os sonhos e risos,
Naturalmente indecisos,
Como a crença em muitas fés…

Pode a infância e a juventude
Garantir uma amizade?
A vida é malvada e rude:
Corrói o afeto e a saudade…
Mas, se havia amor sincero,
O laço é ainda vero:
Desafia a eternidade…

A amizade na infância
É muito predestinada:
Em nada há abundância:
A turma, a escola — está dada…
Mas deixamos escapar
O que o Fado quis nos dar:
Uma bênção desprezada.

Mas… Nereida me informou:
Foi o pai, não o Paulinho,
Quem a morte transformou!
Sinto um alívio fininho,
Sinto-me menos mortal!
Não se foi um meu igual,
Mas quem já estava a caminho…

Ai! De certa forma, assim,
Paulinho está mais distante!
Vivo, está longe de mim
(Qual será o seu semblante?)
Mas guardo a lembrança amiga,
Pedindo a Deus que o bendiga
Todo dia, todo instante…


Para Paulo Neujahr e Nereida Manzoli
Frankfurt am Main, 07 de maio de 2016






 
 Como se explica o amor?











Como se explica o amor?
Não era quem ele é,
Se não rimasse com dor,
Se não rimasse com fé.
As rimas todas que tem,
Já o disse certo alguém,
Incluem o Céu até.

Como se explica o amor?
Jamais! Ele não se explica!
Ele é – seja o que for –
O que torna a vida rica!
É queixume, é sentimento,
É puro arrebatamento
De sino quando repica.

Como se explica o amor?
Cuida! Alto lá, poeta!
Que é de barro este andor
Da poesia como meta.
Ela nada explica, não;
Serve só como refrão
Desta vida longa e reta...

Como se explica o amor?
Não se explica, só se sente,
Como o riso de uma cor,
Como é doce o sol poente...
Sim, o amor é o que é;
Bem como a chuva e a maré;
Por isso calo, silente.


Para Paulo Roberto de Araripe Sucupira
São Paulo, 08 de janeiro de 2013






 As andorinhas no fio











As andorinhas no fio
São notas na partitura.
Na tarde de vento e frio
Compõem música tão pura!
Então voam todas elas
E as melodias tão belas
Erguem-se, livres, na altura.


18 de agosto de 2018
Santiago do Chile, templo bahá’í






 
Me aquieto, escutando a chuva











Me aquieto, escutando a chuva.
Tudo chora e geme, até.
Minha dor triste, viúva
De toda esperança e fé...
Mas a chuva me consola;
Desde quando rapazola
Conheço a bênção que é...


17 de agosto de 2018
Santiago do Chile, templo bahá’í




Veio a neta e vêm os netos










Veio a neta e vêm os netos,
Talvez por quererem vir;
Vêm viver fados incertos,
Vêm seus destinos cumprir.
Pois é, assim segue a vida,
Sempre com mais nova vida,
Até a vida se ir.

Netos serão pais, por certo;
Serão avós, Deus mediante.
E eu serei anjo, por perto,
Guiando-os sempre adiante.
Serão poucos a viver,
Mil anjos a proteger,
Cada vida, cada instante.


Para Livia, Lucas Nuri e Nura Beust
Campinas 16 de fevereiro de 2019





  
Vem! Vem!











Vem! Vem! Para chorarmos juntos!
Vem! Vem! Vem! Gargalhar comigo!
Discutiremos mil assuntos,
Esqueceremos do Inimigo!
Vem, que a saudade é grande e forte!
Vem, que te quero como norte!
Vão-se os medos, vai-se o perigo!


Campinas, 16 de fevereiro de 2019





  
Não dei um suspiro há pouco











Não dei um suspiro há pouco,
Mas logo me arrependi.
Sem meus ais eu fico louco,
Sem eles não vivo aqui.
Com cada ai vão mil preces
Em busca de mil benesses
Do Senhor que nos sorri.

Tivesse eu mais suspirado
Quiçá não sofresse tanto;
Deus me dava de bom grado
Sem que eu derramasse pranto.
Todo suspiro é uma prece
Pelo bem que a alma carece.
Parte o mal. Rompe o quebranto.


Barueri, HP, 03 de abril de 2019





  
Não Te vi na amoreira











Não Te vi na amoreira
Quando colhias frutinhas.
Eu, do precipício à beira,
Me esquecera que hoje vinhas.
E assim, ao te ver alegre,
Sem temor que prenda ou regre,
Te tomei as mãos nas minhas.

E o abismo era passado,
Algo que nunca existiu.
Nas amoras, um recado
De Quem ninguém nunca viu:
“Tudo está certo”, pensei,
“Tudo segue a boa Lei”.
O precipício sumiu.


Barueri, HP, 04 de abril de 2019





  
Fui-me embora de mim mesmo











Fui-me embora de mim mesmo
Sem saudade, ou peso, ou dor.
Sem destino, andando a esmo,
Vou sem pena ou dissabor.
Importava-me a partida,
Não a rota a ser seguida;
(Chego a Ti por onde for.)

Se estou em mim não Te alcanço
Nem sou Teu se me pertenço;
Se folgo em mim eu me canso,
Só tenho paz se me venço.
Perdendo-me de mim venho
Às paragens que eu não tenho,
Onde tudo é bom e intenso.


Para Adriana Fiori
Campinas, 20 de julho de 2019





  
Quis me deixar para trás











Quis me deixar para trás,
Mas me arrastei sempre junto.
Tu também, por onde vás,
Sempre estarás em conjunto...
Não há como eu ser só eu,
Enquanto um eu não morreu;
Serei eu se eu for defunto.

Quis esquecer de quem era,
Mas as saudades de mim
Ardiam muito. Pudera!
Não é para ser assim!
O esquecimento é vazio,
Um leito seco de rio,
Um vazio, um nada, enfim

Mais que esquecer quem eu sou,
Me abandonar no caminho,
Preciso ver pr’onde eu vou
No encontro do Teu carinho.
Nada abandono ou esqueço:
És meu Fim, e eu, o começo;
Eu e eu não vou sozinho.


Campinas, 21 de julho de 2019





  
Onde sei que não estou











Onde sei que não estou,
Quando sei que não me vejo,
É onde melhor estou,
É quando melhor me vejo.
Sou espelho de mim mesmo,
Com mil reflexos a esmo,
Procurando o sol que almejo.

Quando o espelho encontra o sol
Já minha imagem fenece;
O espelho faz-se um farol
E o eu que havia? Ah! esquece!
Quando o sol está em mim,
Brilha e rebrilha e, por fim,
Sou só um suspiro, uma prece...


Campinas, 21 de julho de 2019





  
Atrás da orelha há uma pulga











Atrás da orelha há uma pulga
Ajuntada de outras mil.
Irrequieta, ela promulga:
“Tua questão é senil!
“De tão velha, já morreu!”
E eu: “Não sei o que me deu!
“É uma dúvida de abril...”

Ser ou não ser, me pergunto
(Ante o fantasma de mim),
E Hamlet pergunta junto
(“Pois não? Pois não? Ah! pois sim!”).
Essa dúvida é tão velha
Qual xarope de groselha,
Qual palito de marfim.

Mas, afinal, o que era
Esta questão desumana?
Era verdade ou quimera?
Questão sagrada ou profana?
Já não sei se sou ou não,
Uma estrela ou pó do chão,
Sabiá na tarde insana...


Campinas, 21 de julho de 2019





 
Não, eu não sou quem eu sou











Não, eu não sou quem eu sou,
Nem quem eu queria ser.
No limbo por onde vou
Eu peno em me conhecer.
Fui, sou e serei truncado,
Feixe de Ser enrolado,
Que está sempre a renascer.

Falei de mim para mim:
“O que tu buscas?”, porém,
Senti que falando assim
Não falava com ninguém...
Conversei comigo mesmo,
Joguei palavras a esmo...
E então, quem falou com quem?

Escutei o que eu dizia
E atentei ao seu sentido.
Em mor parte era poesia
— Lonjuras... um tempo ido...—.
Mas a questão já me vem:
Não sei quem falou com quem
Nesse meu eu dividido.


Campinas, 21 de julho de 2019





  
Bem amei e fui amado











Bem amei e fui amado
Neste mundo de tristezas.
Este anjo do meu lado
Sussurra grandes certezas:
“Se amaste, diz amém!
“Se foste amado, também;
“O amor tem grandes belezas!”

Vi locais belos e antigos,
Com a pátina da história.
Tive bons, gentis amigos
Nesta vida transitória.
O anjo me bateu palmas:
“Amigos salvam as almas!”
Disse, em voz confirmatória.

Pude perder e achar Deus,
Seguir ou não mandamentos.
Escrevei os prantos meus,
Ocultei meus sofrimentos.
O anjo sorriu e voou.
Não sei que fim o levou.
Quiçá seguiu os bons ventos...

Campinas, 22 de julho de 2019





  
Em contos, filmes, romances











Em contos, filmes, romances,
Vivo outas vidas, vicárias;
Cheias de insuspeitos lances:
Minha vida já é várias.
Rio e choro mil enredos,
Me vêm coragem e medos;
Minha vida é milenária.

Vivo mil vidas nas tramas!
Umas ruins, outras boas;
Envolvo-me em todos dramas,
Reconheço essas pessoas...
Sim, são vidas paralelas,
Mas sei viver todas elas:
Espadas, mares, coroas.

Vivi, pois, mil existências,
Além de viver a minha:
Os marasmos e as urgências
E tudo o que se adivinha.
Sou múltiplo; sou plural!
Partido entre o bem e o mal,
Assim que cai a tardinha.


Campinas 02 de agosto de 2019





  
O passado nunca fica











O passado nunca fica
Lá onde a gente o deixou;
A história plural e rica
Que pelo tempo passou.
O passado vem de arrasto
Mesmo em trapos, mesmo gasto;
Veio junto e lá ficou.

Ficou onde aconteceu,
Veio junto para agora.
O passado não morreu,
Pois por ele a alma chora.
O que se foi vive ainda,
E o presente acolhe e brinda
A vida que foi embora.

Sabor de sagu, canjica;
Som do bonde que passou...
O passado nunca fica
Lá onde a gente o deixou.
Vive ainda nos suspiros,
E se esconde nos retiros
De toda alma que amou.


Campinas, 02 de agosto de 2019





  
O passado é solitário











O passado é solitário,
Pois ninguém viu o que eu vi.
Só eu conheço o cenário
Dos momentos que eu vivi.
Fogão a lenha chiava,
No jardim amplo eu brincava;
Só resta eu agora ali...

Dona Anita preparava
Ambrosia pedaçuda.
Se uma cobra despontava,
Já era um deus-nos-acuda!
Mesa e rádio azul-celeste,
Que a memória agora veste
De poesias triste e muda.

O passado é solitário.
Cada um carrega o seu.
Meu tio mostrava um canário;
Logo em seguida mo deu.
No seu passado há o dar,
Já no meu há o ganhar...
O que haverá só no teu?


Campinas, 02 de agosto de 2019





  
Quero tanto ver as telas











Quero tanto ver as telas
Que Van Gogh nunca pintou.
Por certo seriam belas,
Pelo que aqui se esforçou.
O que Bach nunca compôs,
De Shakespeare outros complôs,
O que Rosa cogitou...

Tanta beleza incompleta,
Tanta glória imanifesta!
Por certo a obra dileta
Seria outra, não esta.
Neste mundo que perece
Muito pouco se oferece
Que ganho o feitio de gesta.

Pessoa tem outras obras
E mais cinquenta heterônimos.
Mistral e Twain, com manobras,
Utilizaram pseudônimos.
Tolo o impulso que tiveram:
Os livros que não fizeram
Serão para sempre anônimos.


Campinas, 03 de agosto de 2019





  
O céu de inverno é bem claro











O céu de inverno é bem claro;
A lua brilha, gloriosa.
Mesmerizado eu reparo
Na névoa leve e gasosa
Que paira sobre a cidade
E, qual fantasma, flutua.
A noite não tem idade.
Olha a lua! Olha a lua!
Apaguem a luz da rua!

Sinto falta de Gramado,
E falta dos pirilampos.
Este ipê ali do lado
Melhor estava no campo.
Mil vezes tive esta noite,
Com a magia que é sua!
Olha a lua! Olha a lua!
Apaguem a luz da rua!


Campinas, 17 de agosto de 2019





  
Vê! Um suspiro de nuvem











Vê! Um suspiro de nuvem
Ficou como uma memória.
Uma desfiada nuvem
Roubada de toda glória.
Envelheceu, coitadinha;
Não choveu, como convinha,
E virou nuvem simplória.

É bem assim como nós.
Se não chovemos bondade
Ficamos velhos e sós,
Sem direito a piedade.
A vida, sem Bem, é morta,
É mera existência torta
Recheada de maldade.

Há um suspiro de vida
Em cada ser, cada peito.
Uma nuvem não chovida
Que aguarda chover direito.
Cover o Bem. Se não chove,
O mesmo vento que a move
A tem por algo imperfeito.


Campinas, 21 de agosto de 2019





  
A cada instante sou passado











A cada instante sou passado,
E o futuro que vem vindo
Já se vê ultrapassado:
Vira passado e vai indo...
O presente não existe;
Só há o futuro, que insiste
Em virar passado, rindo.

“Vive o agora!”, eles nos dizem...
Como, se não há “agora”?
O tempo, que os céus bendizem,
É no futuro que mora.
Somos futuro que corre:
Passa por nós e já morre...
(Ficou velho há uma hora.)

É feliz quem pode falar
De si mesmo no passado:
“Eu não sabia rezar,
“Eu não prezava o meu fado.”
O futuro enterra o findo,
E nova chance vem vindo
Para que se evite o errado.


Campinas, 12 de setembro de 2019





  
Ontem me deixei p’ra trás











Ontem me deixei p’ra trás.
Me larguei nalguma esquina.
Não sei mais onde ele jaz,
Se aqui, ali ou na China.
Era um eu velho e curvado
Sob o peso do pecado
Que nossa queda maquina.

Me deixei sem nem remorso,
Pois quando quero ser bom,
Quando ao alto e ao Bem me forço,
Sinto que me vem o dom
De me afastar de mim mesmo
E deixar vagando a esmo
O meu eu cinza ou marrom.

Eu tenho incontáveis eus,
E nem de todos me orgulho.
Oh! quais pertencem a Deus?
Quais são só lixo e entulho?
E se eu me descarto a mim,
Em vez de mim? Então sim
Serei só pó e pedregulho.

Campinas, 14 de setembro de 2019





  
Eu quis me esquecer de mim











Eu quis me esquecer de mim,
Mas sobrou sempre um pedaço.
Por que tem de ser assim,
Que sobre eu no que eu faço?
Tentei me esquecer de mim,
Tentei me perder, enfim:
Não restasse nenhum traço...

Mas de novo estava eu,
Querendo agora não ser,
Perdido no imenso breu
Do ser ou não ser ou ser.
Eu bem morto me queria,
Mas inda eu que queria,
Não sendo, tendo que ser.

Como me deixo p’ra trás?
Como morro para mim?
Seria meu eu capaz
De alcançar seu próprio fim?
Sou gota e, se não me engano,
Mergulharei no oceano...
Não serei mais gota, enfim.


Campinas, 11 de outubro de 2019





  
Gosto tanto de dormir











Gosto tanto de dormir,
Porque ao dormir eu não peco.
Mas minha sina é seguir
Como um fantoche, um boneco,
Cujas cordas outro eu,
Malvado, torpe e ateu,
Leva ao bordel e ao boteco.

Ó Deus, dá-me o sono eterno,
E fugir dos meus enganos,
E deste mar em que aderno,
E destes males mundanos.
Dormir. Nunca despertar!
Sem ver mais sorte ou azar,
Sem mais desejos insanos.

Gosto de dormir, dormir;
E acordar é amolação.
Vou chorar ou vou sorrir?
Que mandará o coração?
No sono, é ele que manda,
E eu danço a sua ciranda,
Obediente como um cão.


Campinas, 12 de outubro de 2019





  
Num dia de vento seco











Num dia de vento seco
E de chuva que já vinha,
Folhas giravam num beco,
Girava a alma que é minha.
E esses sopros misteriosos,
Serenos, depois raivosos,
Roubaram a paz que eu tinha.

Choveu, então, com denodo,
E mais chuva ainda vinha.
O vento, com seu engodo,
Ia como lhe convinha.
Não sei que o vento dissesse,
Se a bem ou mal viesse;
(Quem é que ao vento adivinha?)

Choveu, choveu, choveu tanto!
Parecera não ter fim!
E eram segredos e espanto
Que o vento trazia a mim.
Mas o vento e a chuva calaram,
E os mistérios mis ficaram...
(Eram todos meus, enfim.)


Para Paulo Roberto de Araripe Sucupira
Campinas, 13 de outubro de 2019





  
Foi por ali... desse lado











Foi por ali... desse lado,
Mas correu, voou, sumiu!
Não deixou pista ou recado,
E perdeu-se atrás do rio.
Era um deseja sincero
De alcançar o que eu mais quero,
Mas voou, correu, partiu...

Assim voam meus desejos
De Pureza, Bem e Amor.
Só me mostram seus gracejos
E somem por onde for.
Como fixá-los? não sei...
Soubesse, seria rei,
Co’a alegria ao meu dispor!

Anelos de santidade:
Inconstantes como a vida!
Não se firmam na Verdade,
Brotam qual flor já caída.
Anseios de castidade,[1]
De um coração sem maldade,
De minh’alma compungida...


Campinas, 03 de novembro de 2019



[1] “Um grão de castidade é maior do que cem mil anos de adoração e um mar de conhecimento.” Bahá’u’lláh










  
Um afogado no rio











Um afogado no rio;
Buscava-se o corpo morto.
Era noite e o ar, bem frio;
Todo o povo quieto, absorto.
Então: dezenas de velas,
Velas santas, todas elas,
Dirigem-se ao simples porto.

Sobre pires brancos brilham,
Postos nas águas sombrias;
Andejam as águas, trilham
A rota do morto, frias.
Um bailado de tristeza
De pires com vela acesa,
E preces de almas pias.

Vai o cortejo macabro,
Ziguezagueia, regira,
Um fendido candelabro
Sobre o morto (que suspira).
Ali se ajuntam as luzes
(Sobre os rostos, muitas cruzes):
Eis o morto que sumira.


Para Anita e Borges, in memoriam
Campinas, 03 de novembro de 2019






  












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