domingo, 5 de novembro de 2017

4. Vitam aeternam


Luis Henrique Beust







Dies Domini
D i a    d o   S e n h o r

Dies Amoris
D i a   d e   A m o r 

 Poesias
Celebração do Bicentenário
do Nascimento 
de Bahá’u’lláh 
(1817–2017)
e do Báb
(1819–2019)













Capítulo 4 
Vitam Aeternam
V i d a   e t e r n a




















 
A luz do sol se esvai









A luz do sol se esvai
Ao fim de mais um ocaso.
Um raio torto recai
Sobre a flor daquele vaso.
A luz em mim também morre,
Pois o tempo sempre corre.
É meu fim... não faço caso...

Sou mortal até o pó;
Depois do pó, imortal.[1]
Esta vida doida é só
Da eternidade um portal.
O que fiz e o que não fiz
Nem sempre foi o que eu quis,
Nem sempre escapei do mal.

Como o ocaso avermelhado
Vai morrendo no Oriente,
Sei que morrer é o meu fado,
Como o é de toda gente.
Meu corpo o caixão encerra,
E o caixão irá na terra...
Mas eu seguirei em frente.


Campinas, 06 de julho de 2017



[1] Mortal até o pó, mas depois do pó, imortal.” Padre Antônio Vieira: Sermão de quarta-feira de cinza, 1672, Cap. VI.















  
 
A Torre Eiffel deslumbra!









A Torre Eiffel deslumbra!
Ela e o mundo sem limite!
Não, nela não há penumbra,
É luz e espaço que emite.
Feita de ferro e vazio,
Como quem a construiu,
Convida que se a visite.

Repousamos aos seus pés,
Com crepes de moranguinho;
“O que tu eras, já não és!”
Diz a torre, eu adivinho…
“Ninguém pode ser o mesmo
“Vagando, na vida, a esmo,
“Depois de me ser vizinho…”

Desmontariam a torre
Bem depois da Exposição.
Mas ficou a torre… a Torre!
Quando o resto foi ao chão…
Nossas almas, passageiras,
Como a torre, são matreiras:
Não somem tão fácil, não.


Para Thayline e André Danesh Beust
Paris – Campinas, 16 de junho de 2016

 










Cada dia mais que passa










Cada dia mais que passa
Eu me aproximo de Ti.
Foram-se o riso e a desgraça;
Somente eu sobrevivi.
Não soubesse eu pr’onde eu ia
Bem certo estou que alegria
Nenhuma haveria aqui.

Mas eu sei que és meu Destino,
Em mundos pr’onde eu vou sério.
Minh’alma Te entoa um hino
Que ultrapassa o cemitério.
O que de mim aqui fica
Era pobre, a alma é rica!
(Ah! que tamanho mistério!)


Campinas, 06 de julho de 2017












 
Ai, Cris! Que cedo partiste!









Ai, Cris! Que cedo partiste!
Dizem que o tempo é ilusão.
Pode ser... mas como insiste!
Há um tempo no coração
Que corre de outra maneira...
Sua meta derradeira
Não é o futuro, não.

É um tempo que estaciona,
Que estanca e já não mais corre;
Um tempo que proporciona
A impressão de que não morre.
É o tempo da benquerença,
Que o coração não dispensa
Enquanto o outro tempo escorre...

Ah! Teu tempo aqui findou;
És, agora, eternamente...
Com quem falo? Pr’onde vou?
Quando há conflito em mi’a mente?
O tempo parado há de
Resolver esta saudade,
Consolar-me lá na frente?


Para Cristiane Monteiro, in memoriam
Barueri, HP, 13 de julho de 2016










 
Faz noite em minh’alma... ui!










Faz noite em minh’alma... ui!
Não! não foi porque partiste,
E sim porque eu não me fui:
Ter ficado me põe triste...
Perdi a festa no céu,
A festa que o povo incréu
Nem sequer sabe que existe.

Vem de volta! Vem! me leva!
Deixa eu ser teu companheiro!
Só a morte é que releva
Esta vida-cativeiro.
Mas esta ida é sem volta,
E por isso me revolta
Teres partido primeiro.

Fico aqui... esperando a fila,
Torcendo por minha vez.
A morte... busco senti-la,
E uma certeza se fez:
Vou morrendo, a cada dia,
Para o que em mim não queria...
A morte traz sensatez.


Para Madlen Saberin Vahdat, in memoriam
Porto Alegre, 27 de fevereiro de 2016


 









 
Ah... tu te foste esta noite









Ah... tu te foste esta noite,
Depois de já teres ido.[1]
A morte, com seu açoite,
Veio, e as flechas do Cupido
Vieram junto também:
Amor e morte e Amém
Vêm dar à vida um sentido.

O Amor diz por que vivemos,
Ensina a causa de tudo.
Deus é Pai, bem o sabemos,
Mas é Amor, sobretudo.[2]
Se o Amor ensina o porquê
Desta vida, o para quê
Pertence à Morte, contudo.

Sim! O Amor fala da vida,
A Morte da eternidade.
Nela, a alma sofrida
Acha o consolo, em verdade.
Consolo da vida eterna,
Vida eterna, eterna, eterna!
Dos céus a maior bondade.

Amor e Morte e Amém
São pilares da existência.
São fonte de todo bem
Que podemos ter ciência.
Sim! se o Amor ensina a vida
E a Morte o dom da partida,
O Amém ensina a paciência.

Ah... tu te foste esta noite,
Depois de já teres ido.
E, dos dons que tinhas, foi-te
Dado Amém forte e crescido.
Recebias sol e chuva
Co’a paciência como a uva
Se adoça após ter nascido.


Para minha sogra, Madlen Saberin Vahdat, in memoriam
Porto Alegre, 27 de fevereiro de 2016


[1]O Alzheimer já havia levado Maman Madlen muito tempo antes de sua morte.

[2] I João 4:8.

 










 
Quero ver, no outro mundo










Quero ver, no outro mundo,
Todas tantas coisas belas!
Chego a suspirar profundo
Quando me recordo delas.
Coisas que a traça não come,
Coisas que nem sei o nome,
Isentas de más mazelas.

O que vem depois da vida,
Tu me dizes, é tão belo
Que eu me tiraria a vida
No fogo do meu anelo.
Se eu visse o Além com clareza,
É certo que, com certeza,
Apressava a minha ida...

Ocultar as maravilhas
Da vida que lá me espera
(Lá Sancho governa ilhas!)
É sinal de graça vera.
Assim me contento um pouco,
Co’este mundo doido e louco,
Onde a dor de ser impera.

Mas... se posso desejar,
Quero lá ficar na Europa...
Catedrais a rebrilhar
No ar puro que as envelopa.
Queria Chartres no céu,
Westminster, Laon sem véu...
...Falta ver é se Deus topa...


Barueri, HP, 20 de julho de 2016


 










 
 
Um futuro duradouro









Um futuro duradouro,
Que não finde num minuto,
Esse sim que vale ouro
P’ra quem tem pensar arguto.
O futuro transitório,
De caráter provisório,
Vem e morre... deixa o luto.

Um futuro que não passe,
Que seja horizonte eterno;
Um que não morre nem nasce,
Sem tristeza e sem averno.[1]
Futuro, diria até,
Que não será, mas já é:
Como esta alma que eu governo.

Um futuro de delícias,
Que não seja passatempo;
Seja igual desde as primícias,
Sem vacilos, sem destempo.
Cansei das coisas que passam,
Se repetem, se repassam:
Quero um futuro sem tempo.


Campinas, 17 de setembro de 2016


[1] O lago Averno é um lago em uma cratera de origem vulcânica, na região da Campânia, no Sul da Itália. Era considerado a porta de entrada para o Hades. Na Eneida, de Virgílio, Eneias desce ao submundo através de uma caverna perto dele. Daí seu nome ser sinônimo de inferno.


 














 
Não estou amargurado!









Não estou amargurado!
Apenas não tenho medo...
E, se me vês apressado,
É porque me quero ir cedo.
Não que este mundo não valha;
Mas a matéria atrapalha,
A vida é um engano ledo.

É certo que há maravilhas:
Bach, Cézanne, Van Gogh e Rosa;
No Lake District, as mil trilhas,
Em Praga, a cena gloriosa...
Deus, em tudo, disfarçado:
O amor do amigo ao meu lado,
A fé boa e generosa.

Talvez me bastasse a vida,
Se eu não conhecesse a morte.
Vou chamá-la “outra vida”,
Talvez me entendas, com sorte.
Toda a beleza celeste
Se esvai, ah! quando se veste
O céu co’ as luzes do Norte.[1]


Para Milton Mandel
Barueri, HP, 02 de março de 2016


[1] Luzes do Norte, ou Aurora Boreal.

 










 
Ó Deus! vem e me ensina









Ó Deus! vem e me ensina
Que esta vida findará.
(Que todos têm esta sina...)
Que meu tempo acabará.
Mas que a vida tem sentido,
E mesmo um ser oprimido
Um dia celebrará.

Toda a carne é como grama,
E toda glória do homem
É só como a flor da grama.[1]
Coroas e tronos somem:
No fim, tudo vira pó,
Pois o tempo mói sem dó
E os fortes e os belos somem.

Tudo há de morrer, é certo:
Estrelas, planetas, gentes...
(Sei que o meu fim está perto;
(O teu também, não o sentes?)
Troquemos esta estreiteza
Por um mundo de pureza,
Mundo de bens transcendentes.


Campinas, 01 de setembro de 2017


[1] 1 Pedro 1:24 — “Porque toda carne é como erva, e toda a glória do homem, como a flor da erva.”











 
 
Lá fora a chuva crepita









Lá fora a chuva crepita
Um fogo azul e molhado.
Limpa a vida da desdita,
Deixa o mundo amortalhado.
Um cipreste então balança
A sua funéria dança...
Tudo é um funesto recado...

Me cansa o riso das gentes,
Seus sons, seus muitos ruídos.
Mas amo os ermos silentes
De mil barulhos já idos.
A vida de agitação
Pertence aos vermes do chão,
A carnavais já sumidos.

Quero o silêncio perene
Das estrelas bem distantes;
De minha amiga, Marlene,
Tagarelando há instantes.
Não é o silêncio, porém,
Mas a paz do mais-além,
Que eu anseio o quanto antes.

A chuva chora saudades
De tempos há muito idos.
Chora injustiças, maldades,
Chora os pobres e sofridos.
Mas quando eu beber do Lethe,[1]
Não haverá o que me afete:
Tudo e todos, esquecidos.


Barueri, HP, 03 de agosto de 2016


[1] Lehte (ou Lete): rio mitológico no Hades, o mundo inferior (inferno) dos gregos. Quem bebia de suas águas ganhava a bênção do esquecimento.









 


 
 
P’ra que distâncias voaste?









P’ra que distâncias voaste?
De súbito, assim, de pronto!?
Sim! a vida é só desgaste
E a morte é o próximo encontro.
Mas pode esperar um tanto,
Pode-se driblar o pranto,
Ter com ela um desencontro.

Porém, se reclamo assim,
É por ter invejas tuas!
Tu te adiantaste de mim
Pr’a onde as almas voam nuas.
E cá fiquei eu, no pó,
Cheio de ânsias, de dó:
Não estou onde flutuas.

Mas, ah! chegará o tempo
Do encontro verdadeiro!
Quando o mortal passatempo
Vir o instante derradeiro;
E então estarei contigo...
Eu mais moço, tu antigo,
Eu mais tarde, tu primeiro.


Para Soheil Shahid, in memoriam
Campinas, 25 de dezembro de 2015












 
Te apressaste para a Festa









Te apressaste para a Festa
Quem te pode condenar?
Estavas cansado desta;
Foste outra vida buscar.
Uma vida onde há mais luz,
Onde tudo nos seduz:
Como novos céus, terra e mar.

Te apressaste para a Festa!
Meu Deus! quisera ir contigo!
Sair da vida funesta
Que muitos têm como abrigo.
Vida de caducidade,
Sem permanência ou verdade,
Cheia de dor e perigo.

Te apressaste para a Festa!
Os anjos te olham torto...
Como passou pela fresta
Quem não era p’ra estar morto?
Mas, enfim, o céu te acolhe,
Pois jamais rejeita ou tolhe
Quem buscou nele conforto.


Para Soheil Shahid, in memoriam
Barueri, HP, 09 de março de 2016












 
Passei a noite lembrando









Passei a noite lembrando
Os dias da minha infância.
Quando o destino era brando
E, a vida, sem dura ânsia.
Mal sabia eu da vida
(Seria curta ou comprida?);
O mal mantinha distância...

Devia haver dores, claro
(Quem passa a vida sem isso?),
Mas também havia amparo,
Se machucado... enfermiço...
O desamparo me veio,
Com seu golpe duro e feio,
Com meu pai à dor submisso.

Quem guarda o guarda-noturno?
Quem cuida de quem me cuida?
Com um futuro soturno,
Segue a vida, lenta e fluida.
Nossos filhos avançaram
E, certo, se perguntaram:
“Quem cuida da quem me cuida?”.

Mas não é na infância ida
Que hei de encontrar a paz.
É na frente, na partida:
O rio não corre p’ra trás.
Voltarei a ser criança
Na alma, e, com esperança,
Ser feliz, se for capaz...


Barueri, HP, 23 de janeiro de 2017











 
Tu que morreste; mas não...









Tu que morreste; mas não...
Segues vivo em meus afetos.
Só morre quem vive em vão,
Sem ter amores diletos.
Segues vivo junto a mim
Por um futuro sem fim,
Como cabe aos bons e retos.

Tu que te foste... ‘inda estás
Aqui bem do meu ladinho.
Não podem pessoas más
Te expulsar deste teu ninho;
Ninho do meu coração,
Onde o erro vira perdão
(E a água, lá, vira vinho).

A morte não te roubou;
Ao contrário, estás aqui!
Se o tempo rouba quem sou?
Nunca sou este que vi!
Ai! Meu reflexo no espelho
Me sussurra um grão conselho:
Desprende-te já de ti!

Viramos pó... somos nada...
(E eternos depois do pó!)[1]
Quem teve a vida acabada
Não requer nem pena ou dó.
Quanto mais em nós morremos,
Mais é certo que vivemos
Noutra forma...
Isso...
É só...


Campinas, 03 de julho de 2016


[1] Cf. Padre Antonio Vieira: “[O homem é] Mortal até ao pó, mas depois do pó, imortal”.

Sermão de Quarta-feira de Cinzas, pregado em Roma, no ano de 1672.











 
 
Ao chegarem ao velório









Ao chegarem ao velório
Eu já não estarei lá.
Estará meu corpo inglório
E flores de manacá.
O que eu era está bem morto:
As mãos grandes, o pé torto,
E o mais que eu era por cá.

Não... nem bem tudo o que eu era.
Restará algo divino.
Neste mundo a alma vera
Já entoa o doce hino:
O hino de ser liberta
Para a vida nobre e certa
N’outro mundo, celestino.

O que levarei comigo
Nesta ida ao invisível?
O rosto de cada amigo,
O anseio pelo impossível;
Momentos em que fui puro...
Ficará o ego imaturo
E o que era repreensível.

Só levarei o que é bom,
Pois o que é ruim não existe.
Deus dá a alma e o dom,
Mas é só nosso o que é triste.
O que é mau é só a falta
Do bem que o divino exalta...
(Passou um anjo! Tu viste?)

Imploro a Deus compaixão
De minh’alma pecadoura.
Sou como o pó deste chão
Ao que o sol alumbra e doura.
Nada fui, sou ou serei,
Ante o trono do meu Rei,
Nascido na manjedoura.

Meu Rei pregado na cruz,
Meu Rei na prisão da ‘Akka!
Me envolve na Tua luz,
Que o amor dá e a dor aplaca.
Concede-me Teu perdão,
Tua luz e compaixão,
Redime minh’alma fraca.

Nascemos não para a vida.
Mas p’ra morte atrás do véu.
Por ser dura a despedida,
O povo se mostra incréu.
Se ao meu enterro vierem,
Não chorem, não desesperem...
Em festa estarei no céu.


Barueri, HP, 22 de janeiro de 2915.












 
No fundo, sobre a capela









No fundo, sobre a capela
(Alguém notou, alguém viu?),
Havia uma nuvem bela
Quando tia Mara partiu.
Tantas árvores solenes!
Lembram saudades perenes
De quem p’ro mundo dormiu.

Ah! Morre um ente querido
E a vida fica em suspenso:
Dia de labor perdido
Em respeito ao sacro ascenso.
Na vida, já nada vale,
Não há que se diga ou fale,
Sem ser do mistério imenso.

Sim, o homem é mortal,
Mas imortal também o é.
Até o pó, é mortal;
Depois do pó, diz a Fé,[1]
É um ser imortal e eterno,
Junto ao nosso Pai Superno;
Nem o duvida Tomé...

Toda vida nova nasce
Do fim da vida anterior.
Morre a flor, o fruto dá-se;
Não há o que tirar nem pôr.
Como fetos, nós morremos
No momento em que nascemos,
E esta vida finda em dor.

Mas depois da dor do parto,
(Não mais fetos, mas bebês!),
Sorrisos enchem o quarto!
(Fico espantado! E vocês?)
A nova vida é mais larga,
A do ventre fica amarga,
Por estreita... (logo vês...)

Aqui vivemos estreitos
No ventre da Natureza.
De mil formas, de mil jeitos,
A alma busca a certeza:
De que a morte neste mundo
É só um parto fecundo
Da alma para a Beleza.

As folhas, em mil abanos,
Dizem tchau, ou dizem oi?
Tchaus tristes? Ois soberanos?
P’ra quem foi, mas não se foi.
Os tchaus acenam p’ra flor,
Os ois p’ro fruto com cor;
P’ra quem se foi, mas não foi.

Há quem parte e vira anjo.
Há quem já é anjo e parte.
A morte traz novo arranjo
Da hierarquia, com arte:
Quantos aqui pouco eram,
Lá terão reinos; e imperam
Sobre ex-grandes (no descarte).

Mais que ser grandes na terra,
Sejamos grandes no céu!
Vida da terra se enterra,
É apenas grosso véu!
A vida no céu perdura,
E a alma, livre e pura,
Ganhará o seu troféu.

“Ainda hoje estarás
“Comigo no Paraíso!”[2]
Assim a língua veraz
Do Cristo nos trouxe o siso:
Não tememos, pois, a morte;
Acolhemos nossa sorte
Com loas, amor e riso.


Para Maria Cândida Bolota (tia Mara), in memoriam
Campinas, 05 de janeiro de 2017


[1]Mortal até o pó, mas depois do pó, imortal.” Padre Antônio Vieira: Sermão de quarta-feira de cinza, 1672, Cap. VI.


[2] Lucas 23:43












 
Quando a morte nos levar



 “que luzes tão claras de tudo

o que neste mundo nos cega!”

Padre Antônio Vieira, 1669



Quando a morte nos levar
Da existência combalida
E pudermos meditar
Depois de nossa partida,
Abrir-se-á um clarão;
Que distintas ser-nos-ão
As coisas aqui da vida!

Haverá luzes mui claras
De tudo que aqui nos cega;
Veremos frutos e varas
Que aqui a vida nos nega.
Os frutos das vidas boas,
As varas das não tão boas:
Tudo a morte nos entrega.

Tudo o que no céu dá pena
É o que na vida deu gosto.
A fé que, aqui, foi pequena,
Por lá será bem o oposto.
O prazer daqui é vão...
Que venha o de lá, então!
E que Deus mostre o Seu rosto.

Oh, que transe tão terrível,
Que temores, que aflição,
Se, na hora irreversível,
Não há fé no coração.
O corpo treme ao morrer,
Já a alma, ao renascer
Para a eterna escuridão.

Alfaias de vidas tristes,
Que angústias e desatinos
Aos homens vós infligistes,
Corrompendo seus destinos.
E a razão que é sem-razão
Os faz pensar sempre em vão:
Raciocinam qual meninos.

Os homens, todos, sofridos,
Pelo furor desta vida,
Suspiram mil ais sofridos
Em agitação suicida.
Não sabem por que aqui vivem
Nem — por mais que se motivem —
Por que se vão desta vida.


Barueri, HP, 26 de junho de 2015












 
Quando me não vi no espelho









Quando me não vi no espelho
Já achei que era só alma!
Então raspei o joelho...
Já sei que me falta calma.

Calma p’ra entrar noutra vida,
Que não é mortal como esta.
Mas como esperar a ida
Para a eternidade em festa?

Toco minha mão... não sinto.
Toco meus olhos... e nada...
Um fulgor verde de absinto,
E a mente torpe, acabada.

Cansei de viver! Já chega!
Fantasio a minha morte;
O Espírito me aconchega:
Vou para onde há mais sorte.

Dirás que há muito a fazer,
Mas não o há sempre tanto?
O tempo sempre a querer
Que o enchamos de riso e pranto...

Plantei árvores e versos
No coração deste mundo.
Os versos foram dispersos
Em cada coração fecundo.

O que eu queria e não tive?
Bem mais confiança em Deus
(Sem ela, bem não se vive),
E, num navio, dar adeus...

Já tive o Natal na infância,
Tive uma casa em Gramado;
Peregrinei co’amor e ânsia,
Amei... pequei... o meu fado...

Pude ler Guimarães Rosa,
Tchekov, Tolstoi e Pessoa.
E outros da poesia e prosa
(Essa vida era bem boa)...


Tive amores impossíveis,
Abortados por amor.
Eram amores risíveis
Que só me trariam dor.

Tivemos dois belos filhos
De coração puro e belo.[1]
A vida seguiu nos trilhos,
Não teve grande flagelo.

Mas tive penas de sobra
Cá neste mundo de pó.
O mundo, da alma, cobra
Penas sem fim e sem dó.

Se dá uma taça doce,
Oferece mil amargas.[2]
E o que bem belo antes fosse,
Recebe, do tempo, as cargas.

Nada fica. Nada volta.
Tudo se perde no tempo.
Satisfação e revolta
São somente contratempo.

As desgraças deste mundo
São sempre bem repartidas.
Já houve rei louco, imundo,
E vassalo que era Midas.

O que tememos? O quê?
O que pode ser pior
Que ser do erro mercê?
O pecado é, cá, maior.

Lá no céu já não se peca.
A eternidade é de luz.
Há de ser como a soneca
Que o som da chuva conduz.

Estive em tanto lugares,
Em tantos queria estar...
Mas no céu há terra, mares;
Mil Pragas a visitar...

Vou abraçar meus amados
Que há tanto me precederam.
Os daqui são castigados
Co’as saudades dos que eram.

De cima, tudo verei,
E a oração será farta.
O império do amor e lei,
Quando a alma o mal descarta.

O medo da morte exalta
Os prazeres desta vida.
É porque aqui nos falta
A garantia da ida.

“Ainda hoje estarás
“Comigo no paraíso”,[3]
É a promessa que nos faz
Aquele que é o rei do siso.

Que dúvida pode haver
Da promessa e Quem a fez?
Morremos para viver!
Não há quiçá nem talvez.

É morrendo que se nasce
Para a vida que é eterna.[4]
Por mais mal que aqui se passe,
Sei que lá o amor governa.


Campinas. 10 de janeiro de 2015


[1] André Danesh Beust (1984) e Alexandre Nabil Beust (1986).

[2] ‘Abdu’l-Bahá. Seleção dos Escritos de ‘Abdu’l-Bahá, nº 170 — “Se alguma vez esta vida oferece uma taça doce, centenas de outras amargas lhe seguirão; tal é a condição deste mundo. O homem sábio, portanto, não se prende a esta vida mortal nem confia nela”.

[3] Lucas 23:43 — “Em verdade te digo hoje estarás comigo no Paraíso”.


[4] Frase final da Oração de São Francisco de Assis (1181-1226) — “E é morrendo que se nasce para a vida eterna”.











 
 
Sei que só me é possível









Sei que só me é possível
Um amor que é impossível.
Não choro por minha pena:
Diante de Deus é pequena.
O mundo não é feliz.
Não importa o que se diz,
A tristeza é sempre plena.

Tudo quebra, tudo morre,
O viço da vida escorre,
Vista e siso ficam baços,
E vão rareando os abraços.
Tudo reflui e se vai,
Solitário é cada ai,
A vida é só estilhaços.

Fragmentos do que se foi,
Cada “tchau!” e cada “oi!”,
Reverberam na saudade
Encolhida pela idade,
Quanto mais para lembrar,
Menos lembrança a brotar,
Ai! quiçá brote a piedade!

Vivemos para morrer.
Só morrendo o ser é ser.
A vida é ilusão inglória,
Cada vida e cada história
É aparência de vida,
Mais amena ou mais sofrida,
Nenhuma com brilho ou glória.

Coisas que os homens cultivam,
Que com cobiça objetivam,
Perdem-se todas no pó,
O tempo as traga sem dó.
O que resiste ao adeus
É somente o amor a Deus:
Só ele perdura, só.

A vida tem serventia,
Como o ventre em que se ia,
Por nove meses crescendo;
Quem se é, sempre mais sendo.
Sei que só me é possível
Um amor que é impossível.
Ai! que mistério tremendo!


Campinas, 31 de janeiro de 2015











 
 
Não venham ao meu enterro.










Não venham ao meu enterro.
Não venham, pois já me fui.
Chorar a morte é um erro.
A vida sempre reflui.

A vida é maré vazante;
Vai deixando a praia nua.
É um decrescer constante
Voltado p’ra terra crua.

A vida só diminui
Desde a hora em que viemos.
E o ficar menor inclui
O sabor com que vivemos.

As coisas todas da vida
Buscássemos lá no ventre.
Eram promessa cumprida;
A vida dizia: “entre!”

Porém, desde que nascemos,
A vida a vida solapa.
E a cada dia perdemos
O tempo que nos escapa.

Não escapam só os dias,
Escapa tudo ao redor.
Os amores e as porfias,
(Esses conheço de cor).

Cada dia rouba a vida
Os dias que ela me deu.
Se antes era comprida,
Já vejo agora o fim seu.

Buscar da carne os prazeres
Depois de se haver nascido,
Faz dos homens tristes seres,
Ante Deus, compadecido.

Como amar o que se vai?
Ou a velhice que vem?
Pele enruga e dente cai...
(Quanto mais ficarei sem?)


É a vida qual manada,
No pasto as vacas que mugem?
Não, não é bela boiada:
É cupim, traça e ferrugem...

Esta vida não é boa,
Há amarguras milhares.
O dobre fúnebre ecoa
Em todos dias e lares.

Nascemos não para a vida,
E sim para a eternidade.
Esta passagem sofrida
É só teste da verdade.

Quem viverá com paciência?
Quem amará a justiça?
Quem do amor terá ciência?
E quem não dorme na missa?

Qual coração busca Deus?
Qual aceita a sua cruz?
Qual é um dos fariseus?
Qual carrega a fé e a luz?

Sim. A vida é uma peneira
Por causa do livre-arbítrio;
É nela que Deus joeira:
Separa o baço do vítreo.

Nestes nossos curtos dias,
Podemos seguir o bem,
Ou percorrer torpes vias,
Por onde o mal todo vem.

Na distância da bondade,
O coração, triste, jaz.
Os caminhos da maldade
Roubam dele qualquer paz.

Não só a paz, o mais tudo...
Perdemos o paraíso!
E o demônio, carrancudo,
Nos fará perder o siso.


O féretro segue, absorto,
Para a ida sem retorno...
Pois há que enterrar meu corpo,
Já que a vida é só transtorno.

Quando sigo os bons conselhos,
E os sermões como se deve,
Os meus pecados vermelhos
Já são brancos como a neve.

Do que sobra aos nossos pais,
Somos filhos, nesta vida.
Óvulo, sêmen e os ais:
E a criatura é nascida.

À eternidade, se atentos,
Levamos mais do que sobras;
Dos pais não mais os rebentos,
Mas filhos de nossas obras.[1]

Não se trata de desterro,
Nem é mal de ai ou ui...
Não venham ao meu enterro.
Não venham, pois já me fui.


Barueri, HP, 14 de janeiro de 2015


[1] Padre Antonio Vieira. Sermão da Primeira Dominga do Advento, 1650. — “No nascimento somos filhos de nossos pais, na ressurreição seremos filhos de nossas obras.”






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