Quarenta e um
“Quem sabe direito
o que uma pessoa é? Antes sendo: julgamento é sempre defeituoso, porque o que a
gente julga é o passado.”
Se sei o melhor p’ra mim?
Ai, ai! Duvido que o saiba.
Soubesse, não cometia
Os imensos disparates.
Tanto eu quis só por querer,
Sem ver o certo e o bem,
E o resumo da querência
Era dor por demais grande.
São os outros que nos sabem.
Sim, pois nós não nos sabemos.
O meu olho não se vê...
Eu não enxergo meu rosto...
E quando tento me ver,
Lá no reflexo do espelho,
Então me enxergo ao contrário,
Pelos meus opostamentes.
Eu me olho e me desconheço:
Certo – não sei quem eu fosse.
Quem sou, jamais eu percebo.
De verdade, eu não me sei,
São os outros que me sabem:
Espelhos veros de mim...
É por isso que pergunto:
–
Ó tu que passas! Quem sou?
–
Tu que me enxergas! Quem sou?
–
Tu que me amas... Quem sou?
Por favor, digam à claras
Quem eu sou, quem sou, quem sou?
Não deixem nada escondido,
Pois o segredo escondido
Já vira mil conjecturas,
Bem piores que o segredo.
Deslembrei de tanta coisa
E me esqueci de outras mais.
O sol é uma bola laranja
Quase impossível no céu.
Despede-se mais um dia
Dos que me foram entregues
Para por aqui viver.
Cada vez mais eu sei menos
Quem é que, em verdade, eu sou.
Na verdade, não me vejo.
Certo que não me conheço.
Na verdade sou feliz
Por haver o tanto tanto
Que eu todo desconheço.
A vida nos interlúdios...
Grande parte do futuro
Se acomodou no passado.
E se eu não sei quem eu sou,
Acho que eu sei quem eu era.
E sei que eu não quero ser
O que eu parecia ser
Quando eu era o que eu era.
A cada dia ser outro,
Mais vazio do que eu sou.
Pois é só quando eu não sou
Que passo a ser de verdade.
E deixo que os meus eus mortos
Enterrem seus tantos mortos.
O que é a vida, senão
Uma trama de ilusões?
O mundo ficou mais raso
Que chuva em capô de carro.
A mediocridade ativa
Que destrói toda nobreza.
As caixas de som, nos carros,
São arrasa-quarteirão.
Então escuta-se Bach
Ao tambor de leco-leco.
O asco. A sordidez...
Nobreza da alma humana
Violentada pela música.
O que se ouve é barulho
Com letras impronunciáveis:
Deveriam ser multadas
Por atentado ao pudor:
Violência sexual
A ouvidos desprotegidos.
Eu passei a noite em claro.
Percebi os mil ruídos
Da noite tão silenciosa.
Nós somos o que pensamos,
Ou somos o que sentimos?
Ou não somos nada disso,
Muito antes ao contrário...
Depende qual o sentir.
Se for aquele do corpo,
Eu sinto sem pensamento;
Mas pensando o sentimento,
Sinto em mim o pensamento.
Mas o sentimento d’alma,
Este exige raciocínio:
O que eu penso negocia
Como é que me vou sentir:
Ou é ruim da cabeça,
Ou é doente do pé.
Mas, no fundo, a alma é nobre,
Nasce plenamente pura.
A alma é um sinal de Deus
Na sagrada identidade
Do imo de cada homem.
Mas... se é nobre a alma humana,
Por que compõe porcarias?
Por que planeja vilezas?
Por que faz barbaridades?
O bem não é obrigatório,
Mas escolha facultada.
A nobreza é um continuum
Do menos cem ao mais cem;
Nela se evolui e cresce,
Ou se afunda mais e mais.
Como, senão, sermos livres?
Como o livre livre-arbítrio?
Foi-se o senso de pureza.
Quem comeu, arregalou-se.
Bem igual de diferente
São os pobres animais,
Que não podem ser distintos
Daquilo que sempre são.
Os animais não se sabem,
Mas são. Irremediáveis.
Já os homens, sim, se sabem,
Na pluralidade do ser:
O eu em si, do pecado,
E o eu em Deus, todo santo.
Que rumo dou ao meu barco
Que os ventos da vida empurram?
Para o mar aberto e a pesca,
Ou às pedras e ao naufrágio?
O vento sopra constante,
Mas o leme: em minhas mãos.
Ai, ai! Vós que me vedes!
Dizei-me agora: quem sou?
Somos tão cegos às faltas
Quando estão dentro de nós.
Escolheremos mais certo
Onde escolhemos errado?
Para tudo há um sentido?
O sol mergulha no mar?
Se sei o melhor p’ra mim?
Nada daquilo que eu quero!
E tudo o que Deus deseja.
São Paulo/Campinas, 23/8/2014
Para Sabrina e Mirella Granucci
Quarenta e dois
“Todo caminho da gente é resvaloso. Mas também, cair não
prejudica demais – a gente levanta, a gente sobe, a gente volta!...”
Deixei a janela aberta
Só para escutar a chuva.
Longe, os trovões me alegravam;
Perto, as calhas gotejavam
Num crepitar bem molhado,
Como estranho fogo líquido.
Confesso que estou cansado
Das mesquinhezes da vida.
Cansado do dia a dia
Que a vida nossa demanda:
As senhas que não funcionam,
As senhas onipresentes;
Burocracia estatal,
O trânsito alucinado,
Impostos acachapantes,
Tão certeiros quanto a morte.
Preciso de vida mais simples.
Teje dó! Fico piongo...
A vantagem do passado
É que nós já o sabemos.
O futuro é todo incógnita:
Agonizadoramente.
E fico parado, quieto...
Ôxi! Engoli um morto?
Não quero bulir c’o tempo.
Não quero bulir co’a vida.
No meio da tempestade
O juízo baixa as velas,
Acolhe o sabor das ondas
E só se deixa levar.
Navegar contra o tufão
É certeza de tragédia:
Há que saber se curvar.
Sou miúdo na tormenta.
Pode me matar a vida,
Pode me matar a morte,
Mas eu sei que ressuscito.
Fico num siri com Toddy...
Posso confiar, será?
No meu pobre coração?
Os bons vão para o céu,
Os bonzões vão para o inferno.
Teje dó? Seguramente!
A vida nos quer matar,
Mas a noite traz o sono,
Ele, que é um sussurro
Da infinita eternidade.
Tudo o que a vida me cansa
O sono me desoprime:
Lá vivo a vida que quero
Em Lauterbrunnen, em Praga,
Em Londres, Paris, Carmel...
Em Dresden, Salzburg, Munique;
Inerlaken, Ulm, Grasmere;
Veneza, Florença, Roma;
Nas memórias de Gramado.
Fico quieto, carrancudo...
Sem pensamento ou palavra.
Engoli eu um mudinho?
Vix! O sono me dá sonhos,
Lampejos de eternidade.
Tudo isso me cai bem
Como chuva em roça seca.
O mundo do sono é bom
Qual namoro no começo.
E me despeço do dia
Com uma alegria imensa
Sem nem saudade do sol.
Você? Teja um bom dia!
Como posso ser feliz?
Não... Não me conheço, não.
Por isso pergunto a ti.
Cada qual com seus trabalhos,
Com seus sonhos, cada qual,
Girando na roda-viva
Do que é bom e que não é,
Se ocupando de tolices
P’ra não ficar enfadado
Até a hora final,
A tal hora derradeira
Em que viraremos sonho
E lembranças generosas
Se tivermos sido bons.
Só os santos são translúcidos
E só Deus é transparente.
A vida é do pó às cinzas,
Com entremeio de risos
E lágrimas de roldão.
Na vida morremos muito,
Mas a gente ressuscita,
Mas a gente se levanta...
Olhos poéticos. Longe...
E uma esperança de vida
Mais além da própria vida,
Na eternidade eterna,
No âmago luminoso
Do amor infinito de Deus.
São Paulo, 22/10/2014
Quarenta e três
“Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive os fatos.
Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não
estamos vendo.”
Tudo parece sem Deus:
Um mundo desencantado.
O acaso domina tudo
E toda coisa que é
Bem poderia não ser.
E a causa final de tudo?
Uma não-causa, afinal?
Escolhi acreditar
Para dar maior sentido
Aos mil absurdos da vida.
E a vida assim: bem comprida,
Mais comprida que xingada
De homem bem gagagago.
Eu preciso tanto tempo
Quanto o tempo que eu preciso...
Tanto a dizer. Ou tão pouco.
As palavras vão ao fundo
Como pedrinhas no poço;
Mas se elevam, sobranceiras,
Como água que evapora.
Elas dizem e não dizem;
Tanto mostram, tanto escondem;
E, nos silêncios da fala,
Há mais dito que não dito.
Há inclusive o bendito
Daquilo que foi desdito.
Fui apreciando o segredo,
À espera de um de repente.
Não tenho medo de cobra?
Não me arrepio co’ aranha?
Talvez uma lua cheia
Me tirasse toda dor?
Sempre lidei com o mal
De uma maneira distante,
Mas ele está sempre perto,
Sussurrante. Ardiloso.
E. Onde está o meu espírito?
O meu eu veraz: cadê?
Ai! O que não sei é tanto!
O que era o meu destino
Quando mudei meu destino?
O que ia ser... já foi?
O verde-azul das montanhas,
O azul-verde do mar...
O inesperadamente...
Um olhar sem endereço
Me aprisionou a consciência.
Por trás daqueles carvalhos
Uma sombra se esquivou,
Afundou-se nos ciprestes
E aumentou o grão mistério.
Por trás de todas as coisas
Há algo vital e lúcido,
Há infinitos sussurros,
Há certezas invisíveis...
O grande mundo visível
É a persona de Deus,
É só o disfarce inquieto
De Quem é o Sereníssimo.
E ficamos por aqui,
Com o entendimento curto
Como pelo de cavalo,
Sem nem perceber o óbvio,
Sem nem alcançar o aqui,
Sem nem alcançar o agora.
Os mistérios são tamanhos!
As interrogações: mis...
Onde fui buscar sentido
Se o universo não o tem?
Onde li os muitos versos
Das poesias não escritas?
As tristezas coetâneas,
As alegrias coevas,
Todo dia. Sempre assim...
Ao longe rangiam bondes,
Os trilhos eram molhados,
Com o orvalho da manhã.
Também havia o padeiro,
E o afiador de facas,
De tesouras e alicates
(De cutícula, é claro!)
Que melancolicamente
Tocava de boca a gaita.
Fizesse a tarde gemer?
As simpáticas garrafas
De vidro, de leite – ali –
Bem na soleira da porta?
Como a vida rouba a vida!
Na voragem de uma fuga
Da Paixão de São João...
Maiormente eu bem queria
Enxergar os entretantos
E partir de vez. De vez.
São Paulo, HP, 22/10/2014
Quarenta e quatro
“Ser capaz de ficar alegre e mais alegre no meio da alegria.
E ainda mais alegre no meio da tristeza.”
As desilusões da vida...
As desilusões da vida
Deixam a alma marcada
Com cicatrizes de dor.
O que foi que eu quis. Não quis?
Manacás e quaresmeiras;
Ardência de flamboiants.
Quando deixei de te amar?
Do mesmo jeito que o ontem
Talvez não seja o amanhã.
E talvez os mil suspiros
Me ensinem a ser feliz?
Melhor ser rico e saudável
Do que ser pobre e doente.
Porém, não ficam os ricos
Fora do Reino dos Céu?
Indeciso ponto e vírgula
Questiona a teologia.
Tropeço numa lembrança?
De algo que pensei eu ser
Longinquamente, no antanho.
Mitologicamente, eu?
O oposto do oposto. Ôsto?
Falando ao meu eu mais íntimo,
Sugeri sossego e calma.
Eu – impreterivelmente.
Não há bem que sempre dure,
Nem um mal que não se acabe.
E quem ama de verdade,
Anseia, sim, pelos dardos!
Sem isso, de que maneira,
Comprovar o seu amor?
É masoquismo ou sapiência
Sorrir ante os sofrimentos?
A árvore implora a poda.
A terra beija o arado.
Com fé, não há dor na dor
E sem dor não há sentido.
Por isso tomo mi’a cruz
E O sigo no Calvário.
Simples assim. Simples. Simples.
Como franzir o nariz.
O mistério da tristeza
É que, no fundo, não há.
As consequências de tudo...
Os segredos têm segredos.
Nada é o que parece.
A tão loucura de Hamlet
É só teatro, só cena.
O mundo é uma ilusão;
Uma peça teatral
Com ares de realidade.
Fosse o mundo de verdade,
Estaria em outras mãos.
O relógio está maluco:
Deu uma hora três vezes.
Mas tudo é incauto e pseudo,
Tudo é tantas lembranças...
O gato tem sete vidas,
Mas não tem ressurreição.
Se eu rio na minha morte
É que estou ressuscitado.
Ninguém é na falescência.
Quem tem boca sai de Roma.
Só somos o que levamos,
O vero amor que sentimos,
A fé que elaboramos,
A caridade sincera,
A humildade condigna,
A boa sabedoria,
A confiança em Deus.
O que deixo para trás?
Corpo, bens e honraria...
Não ressurreição não sou
Mais filho de pai e mãe,
Senão que de minhas obras.
Há tanto bem a ser feito.
Tanto amor a se entregar....
Sei que há coisas que não cabem
Em versos de sete sílabas...
Levei minh’alma a passear:
Estive dormindo onde?
A infinitude do sonho...
Devagar se vai não longe.
Quem disse que quero ir
Essa distância tão grande?
Tal qual um diamante bruto
Mi’alma se quer lapidada:
Cada corte um novo brilho;
Menos de mim, mais de luz.
Perfumo o machado agudo
Que me corta. E viro lenha
Para aquecer tuas tardes,
Queimando em tua lareira.
Porém, acima de tudo,
Tenho andado distraído.
São Paulo, HP, 22/10/2014.
Quarenta e cinco
“Deus come escondido, e o Diabo sai por toda parte lambendo
o prato.”
Terei eu apego autóctone?
Ou pecados importados;
Altos, belos, estrangeiros,
Qual cheirosos eucaliptos?
Sou pessoa coitadinha?
Eu me apresso para a morte
Pois os mortos andam rápido;
Sempre estão antes de mim...
Para a eternidade eu vou,
É nela que me comprazo,
Nela está o meu repouso;
Sempre foi o meu destino.
A eternidade é de Deus,
O mundo mortal, do Diabo.
Ele é leseiro e vezeiro,
Senhor do mundo de pó.
Porém, se meu corpo morre,
Minha alma se eterniza,
E regressa, quieta, a Deus,
Que quietamente a recebe,
Mais enfeitada que burro
De cigano numa festa.
Sei que Deus é sutilíssimo,
Que Se oculta, que sussurra.
Nas belezas deste mundo
Ele é a matemática;
Ele é a geometria
Incansável do universo
Disfarçada de beleza.
Sonoro em música muda.
O Demo escuta as palavras;
Deus escuta o coração.
Mais tem Deus para me dar
Do que o Demo p’ra tirar.
Por que temo a vida, as horas?
Sabe Deus tudo de todos?
Se sabe, já dará jeito;
Se não sabe, não é Deus.
Confio em Sua mão forte
E em Seu juízo bondoso.
Pecados arrependidos
Diante d’Ele são virtudes.
E Deus não responde às preces?
Não! Deus não está aqui,
Ou no oceano profundo,
Ou no cimo das montanhas,
Entre as estrelas do céus.
Um deus que está não é Deus:
Deus é o Deus que nunca está.
Deus é aquilo que é.
E nada do que dizemos
E nada do que pensamos
Pode alcançar Seu mistério.
Deus é tudo e é nada.
É o que eu não posso expressar.
Um malentendidoeterno.
William Blake conheceu Deus?
Sei que, ao menos, O pintou...
Como pintou o Demônio
E os fogos infernais.
Nas mãos hábeis dos artistas
Ah! Deus fica menos Deus
E o Demônio mais Demônio.
A pintura é uma mentira
Que nos revela a verdade?
“Sabei que Deus é espírito!”
E se pinta o que é espírito?
Na tentativa de ver
Os artistas nos cegaram;
Ao manifestarem Deus,
Certamente O ocultaram
Atrás de mil véus tão belos
Que ficamos adorando
O Deus criado na arte
À imagem e semelhança
Do homem, a criatura.
Onde encontro Deus, então?
Ou na fala, ou no silêncio;
Na quietude, ou movimento;
Ao redor, ou no meu íntimo;
No que vive, ou no que morre;
No que é doce, ou no amargo;
No que é, no que não é...
Em tudo e em nada: Deus.
Além de tudo que eu possa
Imaginar, pensar, crer.
Uma abstração completa;
Uma meta inacessível;
Um mistério. Um mistério.
Absolutaeternamente.
Absolutaeternamente.
O beijo da escuridão
Me retirou a consciência.
Episódios de tristeza
Com o gosto do pecado...
Como o mal sempre se esconde
No desatino e tolice?
Se eu tivesse um coração
O que ele saberia?
E nas feridas da vida,
É só passar merthiolate?
O que eu sei e o que não sei
É tudo e nada que eu disse.
A fumaça do cigarro.
O espirro da borboleta.
A vingança do repolho.
A água-benta evapora?
Se sim,
Se sim,
Se sim,
Não.
São Paulo, HP, 23/10/2014
Nenhum comentário:
Postar um comentário